terça-feira, 28 de abril de 2015

Lótus - Capítulo 11

         Dinky seguia farejando pela rua com Derius e Malcolm em seu encalço, não se incomodaram em passar por vielas e becos, afim de serem mais furtivos, pois a região já havia sido previamente sondada por Derius e Dinky, e além do mais, Derius garantiu que seu cão o avisaria se captasse o odor de outro ser humano por perto. Já havia se tornado seu comportamento padrão.
- Se formos andando chegaremos na rua Marechal Gerard de noite. - Derius contou.
- O que? - Malcolm espantou-se. - Não. Precisamos chegar lá antes. Se chegarmos durante a noite não teremos tempo para bolar o plano e ainda descansar. Teremos de escolher um dos dois, e ambas alternativas vão, provavelmente, resultar no nosso fim.
- Eu tenho uma sugestão, mas correremos um pouco de perigo, e exigirá um pouco de estômago forte.
- O que tem em mente?
           Derius apontou para a calçada do lado esquerdo. Malcolm seguiu seu indicador e viu um carro vermelho batido em um poste. O tempo que havia ficado ao relento deixara cicatrizes no veículo. A tinta estava descascando em alguns pontos da carroceria revelando ferrugem por baixo. Poeira acumulava-se sobre ele, visto que não chovia faziam semanas. Malcolm já não prestava atenção nos veículos espalhados pela cidade, haviam se tornado parte do cenário caótico em que tudo se encontrava, assim como os corpos. Tinha um motivo para não estarem sendo usados. Dois, na verdade: O primeiro era que chamavam muita atenção. Numa cidade movimentada, o som dos carros deixa até de ser notado por sua constância, mas em Cargo, onde o silêncio reinava, usar um veículo era como se fogos de artifício estivessem sendo soltos por onde quer que passasse. O segundo problema eram os corpos na rua, para isso haviam duas opções, ou driblá-los, o que tomaria tempo, ou passar por cima, o que, apesar de ser eticamente mal visto, solucionava parcialmente o problema. Era só imaginar uma rua com muitos quebra-molas espalhados aleatoriamente. Malcolm estava disposto a deixar um pouco de sua humanidade pra trás afim de conseguirem realizar o plano.
- Tudo bem. - Disse então. - Mas acho que precisaremos de outro carro. Aquele ali não me parece em condições de andar.
- Vamos encontrar muitos pelo caminho. Você quer dirigir?
- Não, obrigado.
- Não gosta?
- Não sei. - Confessou Malcolm. - Minha família nunca teve carro, logo, não tive necessidade de aprender a dirigir, e, embora eu saiba que a necessidade possa surgir, eu realmente não me interesso pela direção.
- Bom, a necessidade surgiu. Sorte a nossa que eu sei dirigir. - Derius deu de ombros. - Contudo, acho que minha habilitação ficou na outra calça.
           Malcolm conseguiu rir daquilo, apesar de estar sobre certa tensão. Derius parecia calmo demais com a situação, mas pelo pouco que Malcolm o conhecia, achou que não existiria situação na qual o homem teria sua calma abalada.
           Logo virando a esquina deram de cara com um carro verde no meio da rua com uma das portas traseiras aberta, aparentava estar em condições de uso. Derius abriu a porta do motorista e puxou pra fora o corpo pútrido de um senhor gordo. Por sorte os vidros do carro estavam abertos, logo o cheiro de morte se mostrava suportável. Dinky ficou relutante em entrar, sendo uma raça de cão farejador, aquilo deveria ser uma espécie de inferno particular para ele. Derius o repreendeu e então, de cabeça baixa, ele pulou para o banco traseiro. O carro funcionou bem, tinha combustível suficiente para fazer a viagem. Derius, ao entrar no carro, ajustou meticulosamente os espelhos, pediu para que Malcolm usasse o cinto de segurança e até prendeu seus lisos cabelos em um rabo-de-cavalo no topo de sua nuca, de modo que não ficasse entre sua cabeça e o encosto do banco. Malcolm não questionou nada, achava sensato deixar Derius em paz com suas excentricidades, visto que não prejudicavam ninguém. Ele estimou que chegariam em seu destino dentro de duas horas. Malcolm pediu para que ele não os levasse até a rua pois quando perto da mesma seria melhor que mantivessem a discrição. Chegaram então num consenso. Iriam até um local próximo e de lá fariam uma caminhada de dez minutos até a rua Marechal Gerard.
           Foi uma sensação estranha passar por cima dos corpos. Malcolm não sabia como Derius podia fazê-lo sem expressar nada. Aquelas pessoas podiam ainda ter um ente querido vivo que, por que razão fosse, gostaria de ter a oportunidade de enterrar o corpo de seu familiar ou amigo, mas ali estavam eles, esmigalhando o que sobrara daqueles desconhecidos. Malcolm não pensava dessa maneira. Pra ele, depois que uma pessoa morria de nada adiantava se despedir do corpo, era só um pedaço de carne morta e era tudo que continuaria sendo. Achava que o melhor meio de se lembrar de uma pessoa querida que falecera era manter na memória as coisas boas que ela havia feito e o que ela representara pra você. Se ateve a essa ideologia para suavizar a culpa.
           Malcolm observou com mais cautela a direção de Derius e acabou percebendo que, apesar de toda esquisitice, ele era um bom motorista. Tentava até desviar de um corpo ou outro quando dava. Já tranquilizado, Malcolm decidiu olhar com mais calma os itens de sua mochila para já pensar em algo. Encontrou as marmitas que Christina havia preparado para eles, assim como um metro de uma corda fina de cor escura feita de um material resistente que Malcolm não conhecia, dois metros de uma fina corda de cânhamo, um frasco pequeno cheio de, de acordo com o rótulo, clorofórmio, um pano branco, um isqueiro e uma faca baioneta. - Não temos muito. - Malcolm pensou alto.
- Alguma coisa com a qual trabalhar? - Derius inquiriu, sem tirar os olhos da rua.
- Depende, sabe pra que serve essa cordinha? - Disse retirando a corda fina e escura da mochila.
           Derius olhou pro lado rapidamente e averiguou o objeto.
- Isso serve pra enforcar uma pessoa. - Contou. - É só segurar firme com ambas as mãos, vir por trás do alvo e puxar a corda contra a parte da frente do pescoço dele. Ele vai se debater sem conseguir produzir som por um tempo, mas fica logo sem ar e desmaia.
- Já vi isso em filmes de espiões. - Disse franzindo o cenho. - Nunca pensei que fosse segurar algo próprio pra isso.
- Se for necessário posso usá-la pra derrubar o Caçador. Não vai ser minha primeira vez.
- Manterei isso em mente. - Malcolm duvidava que aquilo fosse funcionar com o caçador. Pelo tamanho do homem que vira, julgara que tivesse um pescoço grosso demais para que a corda surtisse efeito.
           Ele fechou a mochila e a colocou no banco de trás, do lado de Dinky, que a cheirou, curioso.
- Pra você qual a melhor maneira de se matar uma pessoa? - Derius perguntou, sem pudor.
           Malcolm ficou pasmo. Não pela pergunta, mas pela facilidade com a qual foi abordada.
- Se quer saber, a melhor maneira, pra mim, é não matar.
           Derius tirou por um momento os olhos do horizonte e fitou Malcolm, por um período longo o suficiente para deixá-lo desconfortável.
- Se não vai dizer nada ao menos mantenha os olhos na rua. - Falou enfim.
- Desde que te conheci tive uma oportunidade de conversar com você. Me contou um pouco do seu passado e me disse que já tinha matado pessoas pra sobreviver. Então estive te observando. O jeito com o qual você lidou com a situação onde a garota tentou se suicidar demonstrou coragem e segurança, eu estava no centro de operações com Christina e Arthur, assistindo a cena. Levar o irmão dela até lá foi arriscado. Se o garoto não fosse bravo o suficiente pra dizer aquelas verdades talvez ela se jogasse, e talvez ele fosse junto logo depois. Arthur bota muita confiança em você e na sua sensatez, na sua vontade de viver, o fato de ter aceitado vir de carro com esse empecilho dos corpos soma à ideia. Mas de vez em quando eu sinto que você ainda é um pouco instável, sua humanidade ainda entra no caminho da sua sensatez e isso te faz hesitar.
           Malcolm estava incrédulo. Estava sendo analisado psicologicamente pela pessoa mais improvável ao ato.
- Espero que o tempo te ajude a atravessar essa barreira. - Concluiu Derius.
           Ficaram em silêncio por um tempo. Malcolm via verdades no que Derius havia dito. A resposta que deu para a pergunta de Derius mostrava o quão desconfortável ele ainda se sentia com a situação, mas já havia matado e lá estava, a caminho de fazê-lo novamente. Apesar disso, abrir mão de sua humanidade não era algo que poderia se permitir fazer, caso contrário não seria melhor do que aqueles membros dos Eclipse. Ou que o Caçador.
- Sabe Derius, eu entendo seu ponto de vista. Parece hipócrita de minha parte dizer que a melhor maneira seria não matar, quando eu mesmo já o tenha feito. Mas eu não o faço sem motivos e nunca é minha primeira opção. Eu o faço para sobreviver, ou para que pessoas boas ao meu redor sobrevivam. Eu aguento carregar esse peso em minha consciência então o vejo como meu dever. Você vê humanidade e sensatez como dois lados de uma moeda, talvez por isso opte por um deles. Já eu não penso assim, acho que toda minha sensatez provêm de minha humanidade.
           Derius não respondeu. Ficou absorto em seus pensamentos enquanto dirigia. Malcolm notou a seriedade no rosto do homem e pensou que talvez esse fosse um assunto a se abstrair. Permaneceram calados por alguns minutos até que então Derius fez ressoar uma estridente gargalhada. Malcolm, horrorizado, segurou firme no banco do carro por reflexo. Apesar do surto, Derius não parecia ter perdido a atenção na estrada, o que acalmou um pouco o, agora apreensivo Malcolm. A gargalhada foi diminuindo aos poucos e entre as intermitentes pausas que Derius dava para respirar ele empurrava de forma brincalhona o ombro de Malcolm, que sorria desconfortavelmente.
- Acho que agora entendi o seu ponto de vista. - Disse Derius, agora se recompondo. - Desculpe, é que, não tenho essa preocupação que você tem com outros humanos. Não devo ter recebido amor suficiente para nutrir esse sentimento. Nunca criei vínculos com muitos seres humanos, são complicados demais pra mim. Prefiro os cães. São instintivos, obedientes e leais ao seu líder.
           Malcolm não pode deixar de se sentir um pouco mal pelo homem.
- Mas você parece respeitar bastante Arthur.
- Ele é a exceção da minha regra. O considero meu líder. A coisa mais próxima que eu tenho de um amigo. Arthur me salvou, sabe?
- Como foi isso?
- Eu não tive pais. Vivi num orfanato onde ninguém gostava de mim. Aos onze anos conheci uma cadela filhote, vira-lata, na rua. Era um dia chuvoso e ela estava com a pata machucada se abrigando numa caixa de papelão. Eu a dei comida e tratei de seu ferimento. Ela foi minha primeira amiga. Não me deixaram trazê-la comigo para o orfanato, mas não teve importância, eu a encontrava sempre na esquina todos os dias e ficávamos juntos por toda a tarde. Eu finalmente descobrira o que era a felicidade. Depois de um tempo comecei a treiná-la, sem mesmo saber que o estava fazendo. Durante uma brincadeira que fazíamos onde ela passava em oito por entre minhas pernas, uma senhora nos viu e me perguntou se podia ensinar a cadela dela a fazer o mesmo, ela me pagaria pelo trabalho. Eu lá ia dizer não pra um dinheiro fácil? Aceitei. Fiz então mais uma amiga. A cadela da senhora me adorou e não demorei a fazê-la aprender o truque. A senhora então me recomendou para algumas amigas e sem que percebesse estava me tornando um adestrador. Aos dezoito anos fui contratado por uma pet shop, para adestrar cães na loja. Com o dinheiro que eu tinha guardado aluguei uma casa. O tempo foi passando, eu fui crescendo profissionalmente e decidi comprar uma casa só minha, uma com um grande quintal onde eu pudesse ter meus cães e para que eu pudesse adestrar os dos meus clientes em casa. Eu prosperei até que tudo começou. Meus vizinhos começaram a falecer, um por um, e então meus cães: Dot, Giuseppe, Hank, Stone, Gordo, Lua, Derius Jr., Imperador, Dentinho, Faren e Julian. Todos se foram. Dinky permaneceu comigo, mas acabei entrando em depressão. Não fui capaz de enxergar o que ainda tinha, apenas o que havia perdido. Aos poucos fui deixando de comer, deixando de dormir e em certo ponto deixei até de alimentar Dinky, mas mesmo assim ele se manteve ao meu lado. - Dinky, que havia já levantado a cabeça a menção de seu nome, lambeu a mão de Derius quando o mesmo a levou para afagar o focinho do animal. - Arthur invadiu minha casa na intenção de pilhá-la algumas semanas depois de tudo começar. Eu estava quase morto. Arthur cuidou de mim, me fez enxergar que não valia a pena desistir. Pedi desculpas a Dinky. E hoje trabalho para Arthur.
- Desde quando?
- Acho que desde uns dois meses atrás. Arthur me ensinou um monte de coisas. Grande parte delas incluem matar.
- Você realmente não tem problemas com isso?
- Com matar? - Derius franziu o cenho, como se a pergunta não tivesse cabimento. - Claro que não. Existem pessoas que estão melhores mortas, fazem menos mau debaixo da terra. Mas eu nunca fui muito bom em julgar esse tipo de coisa, por isso deixo que alguém de confiança o faça pra mim.
- Eu admiro sua lealdade Derius, mas acho que deveria criar uma opinião própria a respeito disso. Não estou dizendo que Arthur possa vir a estar errado um dia, mas, acho que devemos ter nossa opinião a respeito das coisas.
           Derius não respondeu. Malcolm não sabia se estava terminada a conversa ou se o homem estaria pensando a respeito do que acabara de ser dito, como o fez antes. Agora estava preparado psicologicamente para qualquer reação súbita dele.
           O tempo foi passando e Derius não pareceu querer conversar mais, Malcolm também não forçou.
           Derius estacionou o carro no meio da rua. Haviam chegado enfim ao seu destino, ou ao menos o quão próximo arriscaram se aproximar por carro. Pela posição do sol Malcolm estimou ser por volta de duas, ou talvez três, horas da tarde. Teriam tempo o suficiente. Caminharam até a rua, o que levou o dobro do tempo esperado devido a cautela e discrição que os forçou a avançar um pouco mais lentamente. Dinky podia farejar um ser humano por perto, mas se alguém de longe os vigiasse com um binóculo, por exemplo, poderiam ter problemas.
           Agora na esquina da rua Marechal Gerard, o estômago de Malcolm embrulhara. Pelo caminho ele havia abstraído o fato de que o sucesso daquela missão e, provavelmente, a vida dos dois estavam em suas mãos. Agora a ficha havia caído. Derius estava parado ao seu lado, o encarando, enquanto Dinky farejava pela rua.
- O que fazemos agora?  - Derius perguntara calmamente.
           Malcolm temia essa pergunta. Sabia que ela viria uma hora ou outra. Derius era o tipo de cara que seguia comandos e os executava sem hesitar, isso já estava mais do que claro pra ele.
- Acho que devíamos olhar as casas, ver se encontramos algo de útil pra então escolher onde montar a armadilha. - Malcolm respondeu, sem confiança alguma em sua voz.
- Você acha? Acha? - Derius cruzou seus braços. - Arthur disse que você era um inato líder, e você acha?
  Malcolm se sentia imensamente estúpido agora. Afundou o rosto em suas mãos por alguns segundos enquanto se recompunha.
- Tem razão. Me desculpe. Vou tentar ter mais confiança em mim mesmo.
           Derius continuou o encarando, sem se mover, ou piscar.
- Gostaria de começar procurando pelas casas maiores por algo que possa me ajudar a preparar a armadilha. Você vem comigo, pro caso de encontrarmos alguém lá dentro.
- Se o motivo for só esse não vai ser necessário. Como eu havia dito, Dinky consegue farejar um humano vivo que esteja de um a dois quarteirões de distância, ele vem me avisar de imediato. Se não veio até agora é por que todas as casas dessa rua estão limpas.
- Entendo. Então, quero que você sonde mais pra longe com Dinky. Quero ter certeza de que ninguém irá nos surpreender, e que o Caçador não está por perto. Depois de rodar o perímetro em volta dessa rua, use o faro de Dinky e me encontre onde quer que eu esteja.
- Tudo bem.
           Derius assoviou e Dinky seguiu seu dono para longe.
           A rua estava completamente vazia. Sem veículos ou corpos pelo chão. Na frente de cada casa um quintal gramado, ainda bem verde, "Talvez os regadores automáticos ainda funcionem.", pensou ele. Malcolm também percebeu que uma das casas havia sido totalmente isolada do mundo exterior. Suas janelas não estavam só fechadas, também dava pra ver tábuas de madeira, usadas como reforço, pregadas pela parte de dentro ou até mesmo a parte de trás de alguns móveis que foram arrastados para barrar a entrada. Malcolm não se sentia confortável para entrar naquela casa em particular, mas resolveu confiar no mascote de Derius. Checou primeiro as portas da frente de cada uma das doze casas da rua, incluindo a sinistra. Cinco delas se encontravam abertas e a sinistra não era uma delas. Resolveu não arrombar nenhuma. Não queria alarmar o Caçador. Uma porta arrombada significava que alguém já tinha pilhado o lugar, e isso afastaria o Caçador do local. Ele precisava de uma porta trancada e em perfeito estado, e pra isso teria que escolher uma das casas abertas e trancar a porta atrás de si.
           Malcolm nem percebeu quando Dinky, seguido de Derius, entraram na casa. Estava absorto em seus pensamentos. Sua mente trabalhara a mil até agora com as possibilidades de uso das coisas que ele havia encontrado. Conseguira bolar um plano baseado em distrações e tinha que passá-lo para Derius, mas antes queria se certificar de que tudo estava em seu devido lugar. Havia encontrado nas cinco casas muitas coisas interessantes, mas poucas úteis.
           Derius, ao subir as escadas para o segundo andar da casa, chegou a um corredor em L. Se viam duas portas antes do corredor virar a curva e logo na primeira se deparou com Malcolm que estava sentado no chão cercado dos seguintes objetos: Uma caixa de aparência antiga, alguns copos de vidro vazios, um pequeno extintor de incêndio, um isqueiro, seis velas de cera vermelhas, duas luminárias de escritório, uma galinha de pelúcia, duas pilhas médias e um controle remoto.
- Está no meio de algum ritual ou coisa parecida? - Derius quebrou o silêncio, fazendo Malcolm se virar.
- Sorrateiro como sempre. Isso é bom. - Malcolm sorriu. - Acho que consegui bolar um plano decente. Precisaremos trabalhar em conjunto, mas tenho certeza que dará certo.
- Tudo bem. Diz o que eu tenho que fazer.
- Que tal eu falar do plano inteiro, sua parte inclusa, assim você vai saber exatamente o que está acontecendo.
- Só a minha parte é o suficiente, mas se quiser falar tudo não vou me incomodar.
- Meu plano vai ser baseado em distrações. Ele funciona da seguinte maneira: Vou atrair indiretamente o Caçador pra dentro desse quarto e você vai trancá-lo aqui comigo. Eu vou estar escondido atrás daquele móvel. - Malcolm apontou para um armário pequeno no canto da sala que batia em sua cintura, tinha quatro gavetas no centro e duas portas, uma em cada lado. - De lá de trás vou usar alguns desses objetos para confundir os seus sentidos. E quando ele estiver ocupado comigo, você vai entrar por aquele espelho do outro lado do quarto e pegá-lo por trás.
           Derius procurou, mesmo sem entender muito bem, o tal espelho. Olhando com mais atenção ele pode ver que aquilo era claramente um quarto de criança. No chão o carpete era azul, nas paredes um padrão de figuras de foguetes e estrelas e no teto alguns modelos de naves espaciais pendurados. Não era um quarto muito grande, mas era comprido. A porta de entrada ficava no meio do quarto. Para o lado esquerdo haviam bichos de pelúcia pelo chão e, debaixo da janela, o tal móvel onde atrás Malcolm planejava se esconder. Para o direito havia uma cama forrada com um poeirento cobertor de super-herói, do lado um criado mudo com um abajur em forma de foguete, na parede oposta um outro móvel com uma televisão e um aparelho de DVD, mais pra lá um guarda roupas e então, no final do quarto, um espelho retangular comprido na parede. O espelho em si estava pintado com tinta amarela em diversos lugares, mal se reconhecia.
- É por aquele espelho que vou entrar?
- É sim.
- Ótimo. - Disse Derius se virando para sair do quarto.
- Não vai me perguntar como?
           Derius parou debaixo do umbral da porta e por alguns poucos segundos ficou de costas pra Malcolm, sem se mover. Então, quando Malcolm fez menção de falar, ele se virou.
- Acho que seria bom saber disso.
           Malcolm sorriu desajeitadamente. Ele esperava que Derius fosse se empolgar com o plano, assim como ele ficara. Foi um pouco frustrante sua reação.
- Acontece que aquele espelho é na verdade uma porta falsa. - Explicou. - Desse lado é um espelho, do outro uma porta. Logo só pode ser aberta do quarto adjacente a esse. O quarto dos pais. Acho que fizeram isso para ter segurança para seu filho e privacidade para si mesmo ao mesmo tempo.
- Entendo. Então vou estar do outro lado. - Contemplou Derius. - Tudo bem. - Disse se virando.
- Espera aí. - Disse Malcolm se levantando e limpando a poeira das mãos nas roupas. - Isso é o resumo do plano. Preciso te deixar a parte de todos os mínimos detalhes dele.
- Estamos perdendo tempo, por que não explicou tudo desde o início.
           Malcolm levantou seu indicador preparado para objetar, mas viu a razão no argumento de Derius. Havia se empolgado e esperava que Derius o fizesse também, para que ao menos pudesse tirar um pouco de agrado da situação. Mas a verdade é que não estavam ali para se divertir. Precisavam eliminar um inimigo e essa era a dura realidade.
- Você está certo. Veja bem. O Caçador vai entrar nessa casa. Precisará arrombar a porta da frente, por que trancada ela dará a ilusão de que ninguém de fora entrou aqui. Ele vai pilhar o que tiver de pilhar no primeiro andar e depois vai subir as escadas, esse sendo o primeiro quarto, seria normal que ele entrasse aqui primeiro, mas não pretendo dar oportunidade para o acaso. O plano começa no momento em que ele passar pela porta. Vou montar uma cena no chão desse quarto, bem ali de frente pra porta com a caixinha de música e as velas que encontrei nas outras casas, e para garantir mesmo que ele entre, fiz uma mistura com vários alimentos estragados que encontrei, como leite, ovos e algumas outras coisas que achei pelas cozinhas. O líquido derivado dessa mistura tem um odor incrivelmente pavoroso, então deixei por ora na cozinha do primeiro andar. Pretendo espalhar um pouco pelo carpete desse quarto. Como um caçador isso vai despertar sua curiosidade e creio que seja o suficiente para fazê-lo entrar. Você vai estar escondido no corredor do lado de fora e vai trancar a porta atrás dele, o deixando aqui dentro comigo. Assim que o fizer, vá para o quarto do lado, coloque o ouvido na parede e espere sua deixa para entrar. Assim que você trancá-lo aqui, vou arremessar um dos copos de vidro na parede e gritar como um pássaro, isso deve mexer com a mente dele. Se tiver reflexos de caçador, como espero, ele vai se esconder na lateral da cama, por ser o lugar mais próximo dele, até que avalie melhor a situação. Quando o fizer vou fechar as cortinas da única janela do quarto, consigo fazer isso seguramente de trás do móvel onde vou estar escondido. Com o quarto mergulhado em escuridão, com exceção das velas, vou contar até quinze para que seus olhos se acostumem com a escuridão e então vou colocar as pilhas na galinha de pelúcia para que ela comece a cacarejar, então vou arremessá-la nele. Espero que ele use sua besta. Seria bom que ela estivesse desarmada na hora que você for atacá-lo. Então vou arremessar mais copos em lugares aleatórios. Depois que sua visão já estiver bem acostumada com o negrume, vou ligar as duas luminárias de escritório e as colocarei viradas para ele, de cima do móvel onde estarei me escondendo. Elas são bem fortes e devem cegá-lo, fora que me darão visão dele enquanto ainda assim ele não me vê. Vou usar o controle remoto para ligar a televisão e o aparelho de DVD, já deixei tudo preparado para rodar um filme de ação que encontrei na sala, em volume máximo, ao mesmo tempo vou usar o extintor de incêndio para criar uma cortina de fumaça, e é aí que você entra. Ele vai estar deitado no chão, olhando por debaixo da cama, ou agachado de costas para você. Se tudo der certo sua besta estará desarmada. Abra a porta com calma para se certificar de que ele não está olhando na sua direção, pintei o espelho para que ele não o use para olhar por cima da cama, vai ser obrigado a virar para fazê-lo. A televisão deve abafar qualquer barulho que você produza e a luz das luminárias vai te mostrar com exatidão a posição de seu alvo. Você vai usar a faca baioneta para abatê-lo. Vou manter a arma comigo, ainda tem quatro munições e não quero gastá-las a toa, mas se algo der errado não vou hesitar em atirar.
- É um bom plano. - Disse Derius sem pestanejar. - Estou com fome. Onde colocou aquelas marmitas?
           Mais uma vez Malcolm admirou o quão indiferente Derius conseguia ser para com determinadas situações. Ele ainda tinha que organizar as coisas por ali, então pediu para que Derius fosse até a cozinha onde deixara a mochila com as marmitas e que, se quisesse, não precisava esperá-lo para comer.
           Depois de tudo pronto e preparado, Malcolm desceu até a cozinha e encontrou Derius sentado à mesa de frente para as marmitas ainda intocadas.
- Me esperando? - Malcolm perguntou, sentando-se para comer.
- Não. - Respondeu serenamente. - Estou decidindo qual comer.
- As duas são iguais.
- Eu sei.
           Ele continuou encarando ambas as marmitas. Malcolm tamborilou seus dedos na mesa aguardando a decisão de Derius. Sugeriu então que jogasse uma moeda para se decidir, Derius concordou, então jantaram.
  Satisfeitos, foram à sala. Derius se deitou no sofá maior e Dinky se aconchegou entre as pernas de seu dono. Malcolm estava do lado, sentado numa poltrona, assistindo a um programa de culinária que passava. Vendo o cão se enrolar junto ao seu dono, resolveu perguntar.
- O que ele vai fazer amanhã? - Falou, apontando com o polegar para Dinky.
- Pensei em levá-lo pra longe dessa rua e deixá-lo em algum lugar seguro, uma casa abandonada talvez.
- Deixá-lo?
- Vou dar o comando para que ele fique e me espere. Assim, depois que matarmos o Caçador, só precisarei voltar pra buscá-lo.
- Entendo. E se você demorar pra voltar, ele vai te seguir?
- Não. Ele é obediente demais.
           Malcolm lembrou quando o cão havia se recusado a entrar no carro por causa do mal odor ainda naquele dia, mas deixou pra lá.
- Antes que eu me esqueça, você pegou a faca na mochila?
- Sim. Peguei também a corda de enforcar. Se tiver a chance vou te mostrar como ela funciona amanhã.
- Não acha arriscado? Vi o Caçador por um dos monitores do centro de operações, e vou te dizer, ele é um cara grande.
- Mas continua sendo um cara só.
           Com essa Malcolm se calou. Dormiram cedo e acordaram antes mesmo do sol se levantar. Derius levou Dinky para fora enquanto Malcolm ensopava o carpete do quarto com o líquido malcheiroso que havia produzido. Quando Derius retornou, o sol estava aparecendo ao leste. Malcolm já tinha tudo pronto e checara dez vezes para ter a certeza disso. O Caçador não tardou a aparecer. Malcolm o viu entrar na rua pela janela do quarto onde se escondia. Ele era ainda maior do que se lembrava, com seu grande casaco de pelos, sua besta pendurada por um cinto em seu ombro, seu pequeno e apertado short castanho e suas robustas e intimidantes botas de combate. Malcolm deu o sinal para Derius se posicionar e acendeu logo as velas. A porta da frente estava trancada, só precisava esperar ouvir o som dela sendo arrombada para dar corda na caixinha de música. Ela ia tocar por ininterruptos vinte minutos, ele havia feito o teste. Seria o suficiente. Repassou mais inúmeras vezes o plano em sua mente até que o sonoro golpe foi ouvido no andar de baixo. A hora do show se aproximava. Ele deu corda na caixinha de música e deixou a bailarina dançando rodeada de velas. Se agachou atrás do móvel e repassou mais uma vez seu inventário. Tudo estava certo, então espiou pelo buraco que havia feito na parte de trás do móvel, assim, por uma fresta, conseguiria ver quando o Caçador entrasse. A ansiedade corroía suas entranhas. A cada segundo que passava seu coração batia com mais força, parecia estar prestes a partir as costelas. Foi quando, calmamente, o enorme homem adentrara o quarto. Todos os músculos de Malcolm congelaram de pavor. O Caçador era o homem mais aterrorizante que ele já vira. Seu rosto era hirsuto e sua careca brilhava. Ele parecia um lenhador sobre o efeito de esteroides, daqueles que treinam luta livre com ursos de verdade. Mas não havia tempo para pensar nisso, pois Derius trancara a porta.
           Depois de trancar a porta, Derius ouviu um dos copos de vidro quebrando contra uma parede dentro do quarto, e então Malcolm gritando como uma gralha. Ele se dirigiu ao quarto do lado, como acordado, e se preparou. A faca baioneta estava presa em seu cinto, na região das costas. A corda que planejava usar para enforcar o Caçador estava já enrolada em sua mão direita. Manteve a esquerda livre para abrir a porta com cautela. O quarto onde se encontrava estava imerso em escuridão. Fizeram isso para que o Caçador não visse a luz vazando pelas frestas do espelho. As luzes do quarto onde Malcolm estava também se apagaram, o tempo passou e então a galinha cacarejou. Ouviu-se um som abafado seguido de algo cortando o ar, isso significava que o Caçador havia disparado o projétil de sua besta. Mais copos se quebraram e então a luz das luminárias de escritório surgiu pelas frestas da porta. O plano de Malcolm parecia estar correndo como planejado. A súbita gritaria e som de tiros começara e por entre o barulho de explosões Derius conseguia ouvir o distinto som característico de um extintor de incêndio sendo usado. Chegara a hora. Ele calmamente abriu a porta. O Caçador estava deitado de bruços na lateral da cama, espiando por debaixo da mesma, de costas para Derius. A besta estava desarmada e jogada de lado. A fumaça estava começando a engolir o Caçador, Derius precisava ser rápido se quisesse manter o visual em seu alvo.
           Malcolm havia feito sua parte, pressionava o extintor de incêndio esperando que a qualquer momento Derius desse o sinal para que ele parasse. Mas não foi bem isso que aconteceu. Em certo momento ele escutou o som dos dois se digladiando, então soltou o extintor. Olhou por cima do móvel, mas embora iluminado não conseguiu enxergar muito mais do que vultos se debatendo dentro da fumaça. A briga cessou, e por segundos Malcolm se sentiu aliviado.
- Saia de trás do móvel se não quiser que seu parceiro aqui sofra uma morte horrível. - Disse uma voz grossa que só podia ser do Caçador.
           Malcolm congelou. Sua respiração se tornou ofegante enquanto seus olhos se arregalavam. Derius havia falhado. Alcançou desesperadamente a pistola e a destravou.
- Não tenho o dia inteiro. Saia daí agora. - Disse em tom impaciente.
- Derius, está tudo bem? - Malcolm gritou, ainda detrás do móvel.
           Um segundo de tensão se passou antes que Derius respondesse.
- Eu devia ter usado a faca. - Derius concluiu. Sua voz arranhava, parecia estar sendo enforcado. - Esse cara é enorme.
- Sim, sou. Agora pode sair daí de trás.
- Atira nele Malcolm. Não tem problema se me acertar, só garante que... - Derius conseguiu dizer antes de ser calado e suas palavras se tornarem murmúrios raivosos.
- Não vou brincar se você for usar armas. - Disse, de maneira brincalhona, o Caçador. - Tem uma porta aberta aqui atrás, vocês não valem o esforço. Adeus.
           Malcolm ouviu o que pareceu ser um murro e então o baque surdo de alguém tombando no carpete do quarto. A porta de espelho se fechou e se fez o silêncio.
- Derius. Derius. - Malcolm chamou.
           Ele não respondeu. Malcolm olhou por cima do móvel, a fumaça se dissipava muito lentamente, mas não havia mais a silhueta de qualquer um dos dois. O Caçador fugira. Malcolm segurou firme na arma e deixou a proteção do móvel. Se aproximou vagarosamente da cama e deu a volta nela para encontrar Derius derrubado de cara no chão. Olhou em volta e não viu sinal do Caçador, então soltou a arma no chão e virou Derius de barriga pra cima. Ele ainda respirava, o que era um bom sinal. Malcolm não teve tempo de pensar no que fazer a seguir, por que quando recebeu um forte golpe na têmpora, ele mesmo, assim como Derius fizera segundos antes, caiu ao chão como um saco de batatas. O Caçador havia se escondido no guarda roupas e usara a porta de espelho como isca. Sua visão foi vagarosamente ficando turva enquanto sua força minguava. Com a bochecha colada ao chão, a última imagem que Malcolm vira era a da galinha de pelúcia caída no carpete, com um virote atravessado pela cabeça.