sexta-feira, 24 de abril de 2015

Lótus - Capítulo 3

          Lucas havia passado a noite em uma casa abandonada que encontrou pelo caminho. Seu coração quase parou quando, ao explorar o interior da residência, encontrou o corpo de uma criança de aproximadamente dez anos dentro de um armário. Não haviam malas, sacolas de viagem ou mochilas grandes no local, o máximo que conseguiu foi uma pequena mochila rosa com adesivos de fadas colados por toda extremidade. Abasteceu a mochila com um pouco de comida que ele achou numa dispensa e alguns remédios para contusões e dores que encontrou no banheiro. Não conseguiu encontrar roupas masculinas. Talvez a dona da casa fosse uma mãe solteira, ele não sabia. Provavelmente encontraria algo na casa ao lado, mas estava cansado demais para se dar o trabalho de procurar. O sol tinha se posto havia algum tempo. Lucas achou melhor tratar da sua torção e dormir por ali mesmo, descansando seu tornozelo durante a noite. Usou um pouco do remédio que encontrou e enfaixou seu pé com uma gaze limpa. De manhã ele iria para o ponto B encontrar Malcolm.
           Uma das coisas que Malcolm e Lucas tinham combinado era que para qualquer situação em que os dois precisassem se separar, teriam pontos de encontro marcados, pontos específicos os quais Malcolm conseguiria encontrar mesmo não conhecendo bem as redondezas. O ponto A era uma sorveteria onde Lucas havia trabalhado. Malcolm sempre passava por lá para tomar um sundae por conta da casa. O B era o prédio onde Malcolm trabalhava. Não era bem um prédio, era um apartamento comercial de dois andares, e era lá que eles iam se encontrar. O C era uma loja de conveniência em um posto de gasolina onde Malcolm ficara preso por consumir um biscoito com refrigerante mas ter esquecido sua carteira para pagar a conta. Lucas o salvou nesse dia. Mas o ponto C em específico já havia sido dominado pelos Hienas, não era mais viável.
           Lucas teve um sono pesado, estava exausto ao fim do dia. Acordou bem cedo. Seu pé não estava cem por cento, mas já conseguia andar sem problemas. Talvez fosse ter problemas se precisasse correr. Ele aplicou mais remédio onde antes havia um inchaço, recolocou a gaze e seguiu em direção ao ponto B.
           Ele evitou as vias principais por questões de segurança e, pelo fato de estar usando uma mochila rosa, um pouco de vergonha. Passou por vielas, jardins e becos para evitar chamar atenção de qualquer ser vivo na região. As vezes ele se arrependia de não ter aprendido a dirigir. Com tantos carros abandonados por aí... Acabou pensando na atenção que um veículo em movimento chamaria, seu arrependimento cessou. Depois de uma hora de caminhada ele avistou o local. Espiou de fora por um tempo, mas não percebeu movimento nenhum na região. Respirou fundo e adentrou o edifício. No primeiro andar não havia muita coisa, apenas a recepção, uma cafeteria e as escadas que levavam para o segundo andar e para o terraço. Nada de elevador. Chegando no segundo andar, Lucas se deparou com as várias divisórias separando os cubículos de escritório. Tudo estava repleto de quilos e mais quilos de poeira acumulada. As luzes estavam apagadas, mas a claridade que entrava pelas janelas iluminava bastante todo o cômodo, o chão era coberto por um carpete preto e os equipamentos de trabalho permaneciam em seus devidos lugares. Aparentemente não haviam corpos por ali, apenas papéis amassados, plásticos e mais objetos aleatórios espalhados pelo chão, talvez alguém tivesse revirado as lixeiras em busca de alguma coisa, ele não sabia. Mais ao fundo, depois das divisórias, havia um pequeno espaço com uma geladeira, um micro-ondas numa bancada e duas portas, uma de cada lado, o que Lucas presumiu serem os banheiros. Quando chegou no centro da sala, ele chamou por Malcolm, mas a resposta que obteve foi um gemido contínuo e desesperado. Ele se espantou com o som. Olhou na direção e avistou uma pessoa amarrada e amordaçada em uma cadeira giratória num canto da sala, entre as divisões e a cozinha. Era uma mulher, uma garota na verdade, devia estar no fim da adolescência e era de fato muito bonita. Usava um tênis All-star surrado, um short jeans tão curto que não cobria nem metade de suas grossas coxas brancas, uma camisa branca baby look sem estampas e seu cabelo preto estava solto, e um pouco desgrenhado. Ela tinha avistado Lucas, e seus olhos verdes arregalados clamavam por ajuda. Lucas foi até ela, deixando sua mochila rosa pelo caminho, atrapalhadamente tentando escondê-la atrás de uma das divisórias. Desamarrou o pano que estava em sua boca e ela o agradeceu de imediato. Com um tom de desespero em sua voz, pediu para que ele desprendesse seus pés e mãos. Lucas checou as amarras, reconheceu aqueles nós, quem quer que tenha a amarrado sabia bem o que estava fazendo, acabou passando por sua mente que talvez aquela garota não estivesse amarrada ali sem um propósito. Ele manteve os nós, puxou uma cadeira empoeirada e sentou de frente pra ela.
- O que está fazendo? Anda, me desamarra! - Ela disse. - Antes que ele volte!
           Lucas pensou que talvez Malcolm tivesse amordaçado a garota. Ele é quem havia ensinado Malcolm a dar nós e sabia que Malcolm escolheria aqueles para prender uma pessoa porque foi instruído a isso. Ele precisava descobrir. Mas as curvas daquela garota estavam tirando um pouco de sua atenção.
- Olha, deixa eu resumir pra você o que está acontecendo. - Lucas falava enquanto tentava não desviar seus olhos dos dela. - Eu passei por umas situações bem desagradáveis desde que tudo isso começou e a mais recente foi porque eu ajudei uma pessoa sem nem mesmo conhecê-la.
- Do que você está falando? - Ela forçou as mãos, presas nas costas, para trás numa tentativa frustrada de se soltar, com isso estufou o peito, tirando um pouco do foco de Lucas. - É sério, ele vai voltar e vamos estar ferrados.
           Para cortar o contato visual e manter seu foco, Lucas impulsionou um repentino 360° em sua cadeira giratória. Na metade do giro, quando ficou de frente para as divisórias, pensou ter visto uma cabeça se esconder em um dos espaços, mas quando olhou novamente não viu nada.
- Acho que tem alguém ali. - Disse Lucas em voz baixa ainda olhando pra onde pensou ter visto movimento.
- Não, não tem. - Disse a garota. - Ainda não. Por isso precisa me soltar logo!
- Porque você não facilita as coisas pra mim e me diz quem é você e o que você está fazendo num escritório abandonado amordaçada e presa a uma cadeira. - Lucas se virou de volta pra ela. - Não pretendo te machucar ou algo assim. Só quero ter certeza de que você também não vai fazê-lo.
           Depois de olhar nos olhos dele por uns segundos ela suspirou.
- Tudo bem. - Disse ela num tom mais calmo. - Eu me chamo Patrícia Fernandes e...
- Eu sou o Lucas Gomes. - Ele sorriu e estendeu sua mão para cumprimentá-la.
- É sério? - Ela o encarou secamente.
- Desculpe, eu estava brincando. - Disse ele recolhendo sua mão, e seu sorriso. - Continue.
- Eu estava sobrevivendo nesse inferno com o meu padrasto. Ele quem cuidou de mim quando isso tudo começou. Minha mãe faleceu no segundo dia. Tudo estava indo bem, estávamos nos mantendo longe de toda aquela loucura de clãs, mas com o tempo meu padrasto foi perdendo a sanidade. Ele começou a me olhar de uma maneira estranha... - Nesse exato momento suas bochechas enrubesceram.
- Estranha como? - Lucas acabou sendo pego pela história, numa mescla de preocupação e curiosidade.
- Ele, você sabe, estava começando a me desejar. - Ela olhou para o chão, seus cabelos cobriram sua face e ela começou gradualmente a chorar.
- Calma, calma. - Lucas aproximou sua cadeira da dela e colocou a mão sobre seus ombros. Sentiu um forte impulso para desamarrá-la, mas se controlou. Ainda precisava saber quem havia prendido ela. - O que houve depois?
- Eu fugi dele. - Disse ela, controlando um pouco de seu choro, sem conseguir encarar Lucas. - Ou ao menos eu pensei que fugi. Vim para esse edifício para dormir, mas acordei com meu padrasto deitado ao meu lado, cheirando meus cabelos. Eu gritei, e ele me prendeu aqui nessa cadeira. Disse que voltaria mais tarde para...
           A fala dela foi interrompida pelo som de um pedaço de plástico sendo amassado pouco atrás de Lucas. Ele levantou de imediato e se virou. Parado, a poucos metros de Lucas, no final do corredor que formavam as divisórias, um garotinho com traços asiáticos de não mais que catorze anos, segurava com as duas mãos uma chave inglesa e olhava para o pedaço de plástico debaixo de seus pés. Quando levantou o queixo e viu a figura, não tão, imponente de Lucas o encarando de cima ele paralisou.
- A, droga. - Disse Patrícia num tom decepcionado.
           No exato momento, o garoto largou sua arma e saiu correndo em direção à saída da sala. No meio da corrida ele apanhou a mochila rosa de Lucas e a levou consigo. Lucas permaneceu perplexo por um momento, juntando os fatos em sua cabeça.
- Você estava trabalhando com esse moleque! - Disse ele olhando para Patrícia, que nem chorando de verdade estava.
- É, estava, mas agora já era pra mim. Você não vai atrás da sua mochila?
- Não sei. Ainda estou decidindo se te bato ou não.
           Uma voz de criança foi ouvida da entrada do segundo andar, "Eu volto pra te salvar."
- Como você foi acabar se aliando a uma criança?
- Se um homem da minha idade quer me machucar ele me machuca. Se uma criança quer me machucar eu consigo me defender. E ainda por cima, por ser mais velha, ele acaba me obedecendo.
- Bom, sua decisão será sua ruína. Se fosse um homem da sua idade eu poderia ter problemas em derrubá-lo. Já uma criança... Agora eu só tenho que te amordaçar e esperar escondido por esse maldito. Problema resolvido.
- Você é muito ingênuo mesmo não é? Isso é uma estratégia básica de traição. Ele disse isso pra que você não fosse atrás dele. - O sentimento de pena se mostrava estampado no rosto dela. - Olha pela janela queridinho, aposto que você vai ver ele fugindo pela porta da frente.
           Lucas o fez, não tinha mais nada a perder. Correu pela sala até a janela e descobriu que seu tornozelo já não o atrapalhava mais. Olhando pela janela ele viu o garoto sair andando do edifício usando a mochila rosa. O garoto parecia bem confiante na sua estratégia, pois não correu e nem olhou pra trás depois disso.
- Vai logo atrás dele. - Disse ela. - Aquele pequeno traíra é um idiota. Vai provavelmente ficar correndo em círculos, desesperadamente, até ser apanhado.
- Eu vou. - Lucas calculou que conseguiria pegar o garoto se fosse rápido e silencioso. Decidiu tentar. - Vê se não sai daqui.
            Desceu as escadas o mais rápido que pode, deu passos largos até a porta do edifício onde esperava encontrar o garoto. Mas não tinha mais ninguém lá. Ele andou até o centro da rua e olhou para todos os lados. Nada. Já era a segunda vez em dois dias que perdia suas provisões. Ao menos tinha uma prisioneira, ia decidir o que fazer com ela quando Malcolm chegasse.
- Ei, seu idiota. Obrigado pela comida.
           Lucas seguiu com os olhos a voz. Era a Patrícia, gritando da janela do segundo andar. Não bastasse ela estar livre, o garoto que ele viu fugindo estava do lado dela. Aquilo era impossível. O único caminho que subia para o segundo andar era o que ele havia utilizado, se o garoto subiu, deveria ter passado por ele.
- Você foi muito fácil de enganar. - Gritou o garoto.
           Lucas estava sendo feito de bobo, e o pior é que era exatamente como ele se sentia. Independente disso, sua reação foi abrir um grande sorriso quando uma terceira figura apareceu por trás de Patrícia e do garoto.
- A, cara, que bom te ver! - Gritou Lucas.
- Seu doido, com quem você está falando? - Patrícia riu. - Por um acaso desenroscamos seu último parafuso de sanidade? Ser feito de trouxa te afeta tanto assim?
- Cara, tenho contas a acertar com essa garota. Segura ela pra mim até eu chegar aí. - Lucas disse enquanto corria de volta para o edifício.
- Que insano. - Patrícia falou para o garoto. - Vamos sair daqui antes que ele...

           O que calou sua boca não foi a surpresa, mas sim o mata-leão que Malcolm a aplicara.