Lucas havia passado a noite em uma casa
abandonada que encontrou pelo caminho. Seu coração quase parou quando, ao
explorar o interior da residência, encontrou o corpo de uma criança de
aproximadamente dez anos dentro de um armário. Não haviam malas, sacolas de viagem
ou mochilas grandes no local, o máximo que conseguiu foi uma pequena mochila
rosa com adesivos de fadas colados por toda extremidade. Abasteceu a mochila
com um pouco de comida que ele achou numa dispensa e alguns remédios para
contusões e dores que encontrou no banheiro. Não conseguiu encontrar roupas
masculinas. Talvez a dona da casa fosse uma mãe solteira, ele não sabia.
Provavelmente encontraria algo na casa ao lado, mas estava cansado demais para
se dar o trabalho de procurar. O sol tinha se posto havia algum tempo. Lucas
achou melhor tratar da sua torção e dormir por ali mesmo, descansando seu
tornozelo durante a noite. Usou um pouco do remédio que encontrou e enfaixou
seu pé com uma gaze limpa. De manhã ele iria para o ponto B encontrar Malcolm.
Uma das coisas que Malcolm e Lucas
tinham combinado era que para qualquer situação em que os dois precisassem se
separar, teriam pontos de encontro marcados, pontos específicos os quais
Malcolm conseguiria encontrar mesmo não conhecendo bem as redondezas. O ponto A
era uma sorveteria onde Lucas havia trabalhado. Malcolm sempre passava por lá
para tomar um sundae por conta da casa. O B era o prédio onde Malcolm
trabalhava. Não era bem um prédio, era um apartamento comercial de dois
andares, e era lá que eles iam se encontrar. O C era uma loja de conveniência
em um posto de gasolina onde Malcolm ficara preso por consumir um biscoito com
refrigerante mas ter esquecido sua carteira para pagar a conta. Lucas o salvou
nesse dia. Mas o ponto C em específico já havia sido dominado pelos Hienas, não
era mais viável.
Lucas teve um sono pesado, estava
exausto ao fim do dia. Acordou bem cedo. Seu pé não estava cem por cento, mas
já conseguia andar sem problemas. Talvez fosse ter problemas se precisasse
correr. Ele aplicou mais remédio onde antes havia um inchaço, recolocou a gaze
e seguiu em direção ao ponto B.
Ele evitou as vias principais por
questões de segurança e, pelo fato de estar usando uma mochila rosa, um pouco
de vergonha. Passou por vielas, jardins e becos para evitar chamar atenção de
qualquer ser vivo na região. As vezes ele se arrependia de não ter aprendido a
dirigir. Com tantos carros abandonados por aí... Acabou pensando na atenção que
um veículo em movimento chamaria, seu arrependimento cessou. Depois de uma hora
de caminhada ele avistou o local. Espiou de fora por um tempo, mas não percebeu
movimento nenhum na região. Respirou fundo e adentrou o edifício. No primeiro
andar não havia muita coisa, apenas a recepção, uma cafeteria e as escadas que
levavam para o segundo andar e para o terraço. Nada de elevador. Chegando no
segundo andar, Lucas se deparou com as várias divisórias separando os cubículos
de escritório. Tudo estava repleto de quilos e mais quilos de poeira acumulada.
As luzes estavam apagadas, mas a claridade que entrava pelas janelas iluminava
bastante todo o cômodo, o chão era coberto por um carpete preto e os
equipamentos de trabalho permaneciam em seus devidos lugares. Aparentemente não
haviam corpos por ali, apenas papéis amassados, plásticos e mais objetos
aleatórios espalhados pelo chão, talvez alguém tivesse revirado as lixeiras em
busca de alguma coisa, ele não sabia. Mais ao fundo, depois das divisórias, havia
um pequeno espaço com uma geladeira, um micro-ondas numa bancada e duas portas,
uma de cada lado, o que Lucas presumiu serem os banheiros. Quando chegou no
centro da sala, ele chamou por Malcolm, mas a resposta que obteve foi um gemido
contínuo e desesperado. Ele se espantou com o som. Olhou na direção e avistou
uma pessoa amarrada e amordaçada em uma cadeira giratória num canto da sala,
entre as divisões e a cozinha. Era uma mulher, uma garota na verdade, devia
estar no fim da adolescência e era de fato muito bonita. Usava um tênis
All-star surrado, um short jeans tão curto que não cobria nem metade de suas
grossas coxas brancas, uma camisa branca baby look sem estampas e seu cabelo
preto estava solto, e um pouco desgrenhado. Ela tinha avistado Lucas, e seus
olhos verdes arregalados clamavam por ajuda. Lucas foi até ela, deixando sua
mochila rosa pelo caminho, atrapalhadamente tentando escondê-la atrás de uma
das divisórias. Desamarrou o pano que estava em sua boca e ela o agradeceu de
imediato. Com um tom de desespero em sua voz, pediu para que ele desprendesse
seus pés e mãos. Lucas checou as amarras, reconheceu aqueles nós, quem quer que
tenha a amarrado sabia bem o que estava fazendo, acabou passando por sua mente
que talvez aquela garota não estivesse amarrada ali sem um propósito. Ele
manteve os nós, puxou uma cadeira empoeirada e sentou de frente pra ela.
- O que está fazendo? Anda, me desamarra! - Ela
disse. - Antes que ele volte!
Lucas pensou que talvez Malcolm tivesse
amordaçado a garota. Ele é quem havia ensinado Malcolm a dar nós e sabia que
Malcolm escolheria aqueles para prender uma pessoa porque foi instruído a isso.
Ele precisava descobrir. Mas as curvas daquela garota estavam tirando um pouco
de sua atenção.
- Olha, deixa eu resumir pra você o que está
acontecendo. - Lucas falava enquanto tentava não desviar seus olhos dos dela. -
Eu passei por umas situações bem desagradáveis desde que tudo isso começou e a
mais recente foi porque eu ajudei uma pessoa sem nem mesmo conhecê-la.
- Do que você está falando? - Ela forçou as
mãos, presas nas costas, para trás numa tentativa frustrada de se soltar, com
isso estufou o peito, tirando um pouco do foco de Lucas. - É sério, ele vai
voltar e vamos estar ferrados.
Para cortar o contato visual e manter
seu foco, Lucas impulsionou um repentino 360° em sua cadeira giratória. Na
metade do giro, quando ficou de frente para as divisórias, pensou ter visto uma
cabeça se esconder em um dos espaços, mas quando olhou novamente não viu nada.
- Acho que tem alguém ali. - Disse Lucas em voz
baixa ainda olhando pra onde pensou ter visto movimento.
- Não, não tem. - Disse a garota. - Ainda não.
Por isso precisa me soltar logo!
- Porque você não facilita as coisas pra mim e
me diz quem é você e o que você está fazendo num escritório abandonado
amordaçada e presa a uma cadeira. - Lucas se virou de volta pra ela. - Não
pretendo te machucar ou algo assim. Só quero ter certeza de que você também não
vai fazê-lo.
Depois de olhar nos olhos dele por uns
segundos ela suspirou.
- Tudo bem. - Disse ela num tom mais calmo. -
Eu me chamo Patrícia Fernandes e...
- Eu sou o Lucas Gomes. - Ele sorriu e estendeu
sua mão para cumprimentá-la.
- É sério? - Ela o encarou secamente.
- Desculpe, eu estava brincando. - Disse ele
recolhendo sua mão, e seu sorriso. - Continue.
- Eu estava sobrevivendo nesse inferno com o
meu padrasto. Ele quem cuidou de mim quando isso tudo começou. Minha mãe
faleceu no segundo dia. Tudo estava indo bem, estávamos nos mantendo longe de
toda aquela loucura de clãs, mas com o tempo meu padrasto foi perdendo a
sanidade. Ele começou a me olhar de uma maneira estranha... - Nesse exato
momento suas bochechas enrubesceram.
- Estranha como? - Lucas acabou sendo pego pela
história, numa mescla de preocupação e curiosidade.
- Ele, você sabe, estava começando a me
desejar. - Ela olhou para o chão, seus cabelos cobriram sua face e ela começou
gradualmente a chorar.
- Calma, calma. - Lucas aproximou sua cadeira
da dela e colocou a mão sobre seus ombros. Sentiu um forte impulso para
desamarrá-la, mas se controlou. Ainda precisava saber quem havia prendido ela.
- O que houve depois?
- Eu fugi dele. - Disse ela, controlando um
pouco de seu choro, sem conseguir encarar Lucas. - Ou ao menos eu pensei que
fugi. Vim para esse edifício para dormir, mas acordei com meu padrasto deitado
ao meu lado, cheirando meus cabelos. Eu gritei, e ele me prendeu aqui nessa
cadeira. Disse que voltaria mais tarde para...
A fala dela foi interrompida pelo som
de um pedaço de plástico sendo amassado pouco atrás de Lucas. Ele levantou de
imediato e se virou. Parado, a poucos metros de Lucas, no final do corredor que
formavam as divisórias, um garotinho com traços asiáticos de não mais que
catorze anos, segurava com as duas mãos uma chave inglesa e olhava para o
pedaço de plástico debaixo de seus pés. Quando levantou o queixo e viu a
figura, não tão, imponente de Lucas o encarando de cima ele paralisou.
- A, droga. - Disse Patrícia num tom
decepcionado.
No exato momento, o garoto largou sua
arma e saiu correndo em direção à saída da sala. No meio da corrida ele apanhou
a mochila rosa de Lucas e a levou consigo. Lucas permaneceu perplexo por um
momento, juntando os fatos em sua cabeça.
- Você estava trabalhando com esse moleque! -
Disse ele olhando para Patrícia, que nem chorando de verdade estava.
- É, estava, mas agora já era pra mim. Você não
vai atrás da sua mochila?
- Não sei. Ainda estou decidindo se te bato ou
não.
Uma voz de criança foi ouvida da
entrada do segundo andar, "Eu volto pra te salvar."
- Como você foi acabar se aliando a uma
criança?
- Se um homem da minha idade quer me machucar
ele me machuca. Se uma criança quer me machucar eu consigo me defender. E ainda
por cima, por ser mais velha, ele acaba me obedecendo.
- Bom, sua decisão será sua ruína. Se fosse um
homem da sua idade eu poderia ter problemas em derrubá-lo. Já uma criança...
Agora eu só tenho que te amordaçar e esperar escondido por esse maldito.
Problema resolvido.
- Você é muito ingênuo mesmo não é? Isso é uma estratégia
básica de traição. Ele disse isso pra que você não fosse atrás dele. - O
sentimento de pena se mostrava estampado no rosto dela. - Olha pela janela
queridinho, aposto que você vai ver ele fugindo pela porta da frente.
Lucas o fez, não tinha mais nada a
perder. Correu pela sala até a janela e descobriu que seu tornozelo já não o
atrapalhava mais. Olhando pela janela ele viu o garoto sair andando do edifício
usando a mochila rosa. O garoto parecia bem confiante na sua estratégia, pois
não correu e nem olhou pra trás depois disso.
- Vai logo atrás dele. - Disse ela. - Aquele
pequeno traíra é um idiota. Vai provavelmente ficar correndo em círculos,
desesperadamente, até ser apanhado.
- Eu vou. - Lucas calculou que conseguiria
pegar o garoto se fosse rápido e silencioso. Decidiu tentar. - Vê se não sai
daqui.
Desceu as escadas o mais rápido que pode, deu
passos largos até a porta do edifício onde esperava encontrar o garoto. Mas não
tinha mais ninguém lá. Ele andou até o centro da rua e olhou para todos os
lados. Nada. Já era a segunda vez em dois dias que perdia suas provisões. Ao
menos tinha uma prisioneira, ia decidir o que fazer com ela quando Malcolm
chegasse.
- Ei, seu idiota. Obrigado pela comida.
Lucas seguiu com os olhos a voz. Era a
Patrícia, gritando da janela do segundo andar. Não bastasse ela estar livre, o
garoto que ele viu fugindo estava do lado dela. Aquilo era impossível. O único
caminho que subia para o segundo andar era o que ele havia utilizado, se o
garoto subiu, deveria ter passado por ele.
- Você foi muito fácil de enganar. - Gritou o
garoto.
Lucas estava sendo feito de bobo, e o
pior é que era exatamente como ele se sentia. Independente disso, sua reação
foi abrir um grande sorriso quando uma terceira figura apareceu por trás de
Patrícia e do garoto.
- A, cara, que bom te ver! - Gritou Lucas.
- Seu doido, com quem você está falando? -
Patrícia riu. - Por um acaso desenroscamos seu último parafuso de sanidade? Ser
feito de trouxa te afeta tanto assim?
- Cara, tenho contas a acertar com essa garota.
Segura ela pra mim até eu chegar aí. - Lucas disse enquanto corria de volta
para o edifício.
- Que insano. - Patrícia falou para o garoto. -
Vamos sair daqui antes que ele...
O que calou sua boca não foi a
surpresa, mas sim o mata-leão que Malcolm a aplicara.