Quando Lucas chegou no segundo andar, Patrícia
se encontrava desacordada no chão, o garoto estava ajoelhado do lado dela em
prantos. Malcolm assistia a cena de perto. Lucas a amarrou de volta na cadeira
e Malcolm cuidou para que o garoto não ficasse no caminho. Enquanto
esperavam-na acordar, Lucas contou para Malcolm o que havia acontecido ali, com
todos os possíveis detalhes, enquanto conversavam, o menino permaneceu sentado
abraçando suas pernas. Outro garoto adentrou o escritório, este era exatamente
igual ao que já estava com eles. Ambos usavam camisa verde estampada, uma
bermuda de pano surrada, um tênis de super-herói, tinham o mesmo corte de cuia
em seus lisos cabelos pretos e o mesmo rosto. O que diferenciava era a mochila
rosa que o que chegou carregava.
- Agora as coisas começaram a fazer sentido. -
Lucas disse.
- Vocês mataram ela? - Ele perguntou.
- Não. E Não vamos matá-la, só queremos algumas
respostas. - Malcolm respondeu.
O garoto trocou olhares com seu,
obviamente, irmão e quando o que estava sentado aos pés de Malcolm assentiu,
ele se aproximou. Quando passou por Lucas, que estava sentado em uma cadeira,
deixou a mochila em seu colo e se desculpou friamente. Foi sentar-se ao lado do
irmão e então o abraçou.
- Será que ela vai demorar para acordar? Estou
ficando com fome. - Disse Lucas.
- Tem uma casa abandonada do outro lado da rua.
Se quiser posso ir lá e preparar algo pra comermos. - Disse Malcolm. - Ainda
tenho alguns miojos comigo.
- Eu consegui alguns enlatados. - Lucas jogou a
mochila rosa para Malcolm. - Estão aí dentro, vê se consegue inventar algo para
nós.
- Tudo bem em te deixar a sós com esses dois a
solta? - Malcolm apontou para os garotos sentados.
Malcolm deixou o prédio. Lucas não
tinha o que fazer senão esperar. Pensava no que ia perguntar para ela e em como
ia perguntar. Essa seria a segunda chance dos três e ele realmente não queria
ter que tomar atitudes mais severas para com aquelas crianças. Enquanto o tempo
passava, Lucas tentava conversar com as crianças. Perguntava coisas bobas sobre
super-heróis para tentar fazer com que um deles falasse, mas enquanto um deles
continuava abraçado a suas pernas, o outro não o dava mais do que um olhar
enraivecido.
Malcolm chegou empilhando pratos com talheres
em uma mão e abraçando uma grande vasilha fumegante com a outra. Lucas foi
ajudá-lo e em uma mesa serviram miojo para cinco.
- Espero que vocês gostem de miojo sabor
galinha com salsichas enlatadas. - Malcolm disse enquanto olhava para os
meninos. - Foi tudo o que deu pra fazer.
Os garotos olharam para Malcolm sem
entender ao certo.
- Podemos comer também? - Um dos meninos falou.
- Claro que sim. Peguem um prato aqui na mesa.
- Malcolm se sentou do lado de Lucas e espetou uma salsicha com seu garfo. -
Quando você sentir fome também pode comer.
- Ela está apagada cara, não pode te ouvir. -
Lucas disse quando viu que Malcolm falava com Patrícia.
- Não cara. - Malcolm riu. - Ela está acordada
desde antes de amarrarmos ela. O fingimento é para conseguir tempo. Vamos
descobrir o motivo logo logo.
Os meninos se olharam quando Malcolm terminou
de falar, ambos se levantaram, um deles foi até a mesa e pegou dois pratos, o
outro foi até Patrícia e sussurrou algo no ouvido dela. Ele a ficou encarando
por um tempo e então ela abriu os olhos. O menino se sentou no chão, ao lado de
seu irmão, e pôs-se a comer.
- Tudo bem, vamos conversar. - Disse Patrícia.
- Primeiramente, gostaria de apresentar o
Malcolm, Malcolm Strauss. - Lucas apontou seu garfo para Malcolm. - É graças a
ele que estamos reunidos aqui.
- É um prazer. - Patrícia falou da forma mais
irônica possível. - E a propósito, belo mata-leão. Você poderia ter me matado,
seu brutamontes.
- Poderia sim, e é bom que lembre disso. -
Malcolm respondeu.
- Vamos deixar as palavras de afeto para
depois. - Lucas interveio. - Agora me diga Patrícia, por que se deu ao trabalho
de me enganar? Quero dizer, não pode ter sido só pra me roubar. Tem comida o
suficiente por aí, ainda não precisamos nos digladiar por ela.
Patrícia olhou para os garotos e os viu
entretidos com seus pratos de comida. Não aparentavam estar machucados,
tampouco maltratados.
- Eu faço isso por eles. - Ela apontou para os
garotos com a cabeça. - Ainda são novos. Enquanto podemos pegar comida em casas
abandonas tudo bem, mas e depois? Eles precisam estar prontos para depois. Não
imagino quanto tempo ficaremos por aqui. No início disseram que ia ser rápido,
que logo estaríamos curados e livres. Mas depois de meses ainda estamos aqui.
- Quem são eles? Por que são importantes pra
você? - Perguntou Malcolm.
Ela hesitou em respondê-lo, mas Lucas a
encorajou a continuar.
- Olha, estamos num momento crítico aqui. -
Disse Lucas. - Estamos dando uma segunda chance pra vocês. Vocês podem
contribuir e nos contar a verdade ou vocês podem mentir, ou omitir, e complicar
ainda mais nossa situação. Quem sabe não saímos dessa juntos e como amigos?
- Tudo bem. - Disse Patrícia. - Eles são meus
irmãos. O da esquerda é o Russel Donnoval e o da direita é o Mark Donnoval. Eu
me chamo Elisabeth Donnoval, mas pode me chamar de Lisa.
- Pensei que fosse Patrícia. - Lucas franziu o
cenho.
- Era mentira. - Respondeu Lisa.
- Então a história do padrasto...
- Também era mentira. - Lisa deu de ombros. -
Desculpe por isso, eu acho.
- Eles são asiáticos, você, nem um pouco. -
Malcolm ponderou.
- Eu fui adotada. - Respondeu Lisa. - Quando o
médico disse que mamãe teria problemas em engravidar, nossos pais me adotaram,
eu devia ter uns três anos. Quase um ano depois mamãe estava grávida de gêmeos.
Foi uma grande surpresa para todos, uma bem agradável.
- Ah, desculpe, eu deveria ter percebido. -
Malcolm enrubesceu.
- Não tem problemas. Sempre soube que fui
adotada, e nunca vi problema algum nisso. Se não fosse por nossos pais, não sei
como teria sido minha vida. A que eles me proporcionaram foi incrível. Bem, até
isso tudo acontecer, mas não foi culpa deles.
- E o que houve com seus pais? - Lucas deixou
se levar.
- Eles... - Lisa olhou de relance para seus
irmãos e viu que eles começavam a prestar atenção na conversa. - Estão por aí.
Tenho certeza que estão bem.
Malcolm percebeu a sutil mudança no tom
de voz de Lisa e a perda de brilho em seus olhos. Entendeu que aquele era um
assunto a ser conversado em particular. Esperou veementemente que Lucas também
o tivesse percebido.
- Quem amarrou seus nós? - Lucas perguntou. -
Digo, os que estavam amarrados quando eu te encontrei.
- Aquilo foi obra do Mark ali. - Disse ela com
um sorriso estampado no rosto. - Ele era um escoteiro. E tem o dom para esse
tipo de coisa.
Mark corou enquanto mastigava sua
salsicha.
- Nossa, isso é incrível. - Disse Lucas. - Sabe
Mark, eu também fui um escoteiro. Sabia que conhecia aqueles nós. Eles estavam
muito bons. Tão bons que eu vou até relevar você ter dito que eu sou fácil de
enganar.
- Obrigado. - Mark respondeu em um tom bem
tímido.
Lisa sorriu enquanto olhava para os
irmãos. Seu sorriso se manteve até encontrar os olhos de Lucas. Ela disfarçou o
olhar, meio sem jeito.
- Acho que devo agradecê-los por dar comida a
eles. Se fossem outras pessoas teriam, provavelmente, matado nós três. - Disse
Lisa.
Lucas olhou para Malcolm e ele assentiu
com um gesto. Ambos se levantaram. Lucas foi até as costas de Lisa e desatou os
nós que prendiam-na. Malcolm se aproximou, enquanto ela massageava os pulsos, e
lhe deu um prato cheio.
- Vocês tem certeza que querem me deixar solta?
- Não sei. Vamos descobrir. - Malcolm disse se
sentando novamente. - Se quiser fugir, fuja. Lucas não acha que você seja uma
má pessoa e, se não arrumarem problemas pra nós novamente, não teremos motivos
para machucar vocês. Vocês podem escolher ficar também. A gente continua nossa
conversa, nos conhecemos melhor e, quem sabe, não podemos permanecer juntos.
- Acho que podemos ficar um pouco. Ver onde
isso vai nos levar. - Disse Lisa, nos intervalos de sua mastigação.
- Querem mais? - Lucas disse para os gêmeos.
- Eu...eu aceito. - Disse Mark timidamente.
Lucas se aproximou para recolher o
prato do garoto, mas o irmão pegou o prato e se levantou de súbito, encarando
Lucas com uma carranca.
- Deixa que eu mesmo nos sirvo. - Russel foi de
encontro a tigela.
- Tudo bem. - Lucas disse, um pouco pasmado.
Voltou a se sentar.
- Lisa, eu entendi seu motivo, mas como
exatamente você pensava em escapar? - Perguntou Lucas. - Só existe uma entrada
pra esse edifício, e eu estava nela.
- Tem um caminho improvisado com tábuas de
madeira lá no terraço que dão para o terraço do prédio ao lado. - Disse
Malcolm. - Forte o suficiente para aguentar esses três.
- É. - Lisa parecia um tanto espantada. - Como
você sabe?
- Eu cheguei no edifício e subi direto ao
terraço. - Respondeu Malcolm. - Queria me certificar de que o membro dos Hienas
tinha me perdido. Desci quando vi o Russel saindo do prédio. A mochila rosa
chamou minha atenção. Pouco depois ouvi você gritando e me aproximei,
calmamente, por trás. Reconheci Lucas, Lucas me reconheceu, e o resto você
sabe.
- E por falar nisso, algum problema com o punk?
- Não, Lucas. Ele me perseguiu por um tempo,
mas acho que perdeu sangue demais para continuar. Subi no terraço pra me
certificar. Nunca se sabe né...
- Um dos Hienas estava atrás de você? - Indagou
Lisa. - Mas o território deles fica longe daqui.
- Esse em específico teve problemas conosco. -
Lucas respondeu. - Nada com o qual não consigamos lidar. Lisa, quantos anos
vocês tem?
- Eu tenho dezessete. Mark e Russel tem treze.
- Sério? - Lucas se surpreendeu. - Poderia
jurar que você era mais velha.
- Eu pareço mais velha? - Disse com certa
animosidade.
- Não, não. - Lucas respondeu de imediato. - É
só que... Aquela sua história inventada, ela soou um tanto madura...
- Ah, sim. - Lisa se aliviou. - Falar de temas
sexuais faz com que homens percam a atenção. Quando atuo todo movimento é
planejado.
- Por isso está usando essas roupas? -
Perguntou Malcolm.
- Qual o problema com minhas roupas? - Lisa
soava irritada.
- Não tem problema nen... - Lucas se
desculpava.
- São reveladoras demais. - Malcolm o cortou.
Um silêncio súbito pairou no ar. Mark e
Russel se olharam e então olharam para sua irmã, que permanecia atônita com a
franqueza de Malcolm. Então os três irmãos riram juntos. Russel riu menos.
Lucas os acompanhou com uma risada nervosa, sem saber bem o porquê.
- Sim. - Respondeu Lisa. - É por isso sim.
Quanto mais sensual eu parecer, mais fácil é tirar a atenção deles. E é aí que
o Russel vem por trás e os ataca enquanto indefesos.
- Que tática peculiar. - Ponderou Malcolm.
- E você estava aqui esperando por qualquer um
que entrasse? - Perguntou Lucas.
- Na verdade o Russel estava de vigia e viu sua
mochila rosa a quarteirões de distância. Então ele me acordou. Preparamos o
palco pro caso de você vir para cá. - Disse Lisa se levantando e deixando o
prato na mesa. Então voltou e sentou de volta em sua cadeira. - Se não fosse o
Russel pisando naquele pedaço de plástico barulhento ali tudo teria dado certo.
Mas pra ser sincera, estou feliz que não deu.
Lucas sorriu.
- E vocês, por que estão aqui? Não parece que
tenha sido coincidência.
Malcolm e Lucas passaram o resto da
manhã contando suas histórias para os três irmãos, que pareciam se saciar com
elas. Depois de um tempo, Mark sentou no colo de sua irmã e começou a
socializar também. Ele era um garoto bem tímido, mas depois de algumas risadas
ele conseguiu se soltar. Russel era um tanto mais rabugento e calado, mas no
final conseguiu se mostrar indiferente com aquela situação, o que para ele
parecia ser o mais próximo de "confortável" possível. Lisa riu
bastante das brincadeiras de Lucas e conseguiu entender um pouco melhor a
figura de Malcolm como um cara cauteloso mas de bom coração. Acabaram, por fim,
decidindo permanecer juntos como um grupo. Malcolm e Lucas se beneficiariam do
conhecimento que os três irmãos tinham daquela parte da cidade. Já os três se
beneficiariam da segurança que os garotos mais velhos providenciavam.
- O que pretendem fazer agora? - Malcolm
perguntou.
- Hoje nós planejávamos ir mais para o sul. - Lisa
respondeu. - Para a casa de uma tia nossa.
- Algum motivo em especial? - Disse Lucas.
- Não, nenhum, só queremos saber como ela está.
- Lisa olhou para os irmãos. - Vocês dois, vão para o terraço e deem uma olhada
nas redondezas. Certifiquem que não há ninguém por perto para que possamos sair.
Os dois garotos assentiram e correram
na frente. Lucas e Malcolm trocaram um olhar de aprovação. Seja o que fosse,
ela não queria falar na frente dos irmãos. Depois dos garotos passarem pela
porta Lisa suspirou e abriu o jogo.
- Uma semana atrás, eu chequei todo corpo
fardado que encontrei na rua. Todos os coldres estavam vazios e alguns nem
coldre mais tinham. Uns anos atrás eu ouvi por acidente meus pais comentando
que o bairro onde minha tia morava estava ficando perigoso e que até uma arma
ela havia comprado para se proteger. Eu estou indo pra lá procurar essa arma.
- Entendo. - Disse Malcolm. - Mas acha
realmente necessário?
- Sou uma garota de dezessete anos tomando
conta de dois garotos de treze no meio desse pseudo-apocalipse. Não quero ter
que usar uma arma, mas é melhor do que precisar e não ter uma.
- Mas por que esconde isso deles? - Perguntou
Malcolm.
- O Mark é dócil demais, não machucaria uma
mosca. Já o Russel, ele é um pouco mais maduro, mas o máximo que ele faz é
bater com uma chave inglesa na cabeça de uma pessoa para desacordá-la. Não
quero nem pensar na possibilidade de ter que matar alguém. E também não quero
que eles o pensem.
Lucas e Malcolm trocaram olhares,
tinham contado tudo pra eles, deixaram apenas os homicídios de fora em respeito
aos mais novos. Para os três, a razão de um Hiena estar perseguindo eles era
por ele tê-los visto roubando de seu território. Cedo ou tarde eles contariam
para Lisa que sangue já havia encharcado suas mãos, mas agora sabiam que não
seria uma conversa tão fácil.
- Quando acordei naquela manhã. - Lisa
continuou. - Percebi que meus pais ainda não tinham acordado. Foi o quarto dia
depois do isolamento da cidade. Fui até o quarto deles e os encontrei mortos,
ainda na cama. - Sua voz soava bem áspera. - Mark e Russel ainda não tinham
acordado. Carreguei meus pais pela escada e os escondi no porão. Tranquei a
porta e dei descarga na chave. Quando meus irmãos acordaram, disse a eles que
nossos pais tinham saído para descobrir a cura. Nosso pai era médico, o que
facilitou minha mentira, disse também que mamãe o acompanhara para que ele não
se sentisse sozinho.
- Desculpe por te fazer contar. - Disse Lucas,
colocando a mão em seu ombro.
- Tudo bem. A verdade é que eu já não sei se,
depois de todo esse tempo, eles ainda acreditam na minha mentira. Eles já viram
muitos corpos por aí. No início não foi fácil pra gente, bom, não deve ter sido
fácil pra ninguém, mas agora, mesmo depois de se acostumarem com o fato da
morte estar tão próxima da gente, não consigo contar a verdade pra eles. Não
vou pedir para que mintam por mim, mas, por favor, evitem tocar nesse assunto
daqui pra frente.
- Tudo bem. - Disse Malcolm. - Não acontecerá.
- Obrigada.
Com um sorriso forçado, Lisa foi em
direção a saída.
- Peguem minha mochila no banheiro das
mulheres. - Disse ela, enquanto saía. Vou lá em cima chamá-los e estamos de
saída.
-
Sim senhora. - Lucas respondeu.