sexta-feira, 24 de abril de 2015

Lótus - Capítulo 4

              Quando Lucas chegou no segundo andar, Patrícia se encontrava desacordada no chão, o garoto estava ajoelhado do lado dela em prantos. Malcolm assistia a cena de perto. Lucas a amarrou de volta na cadeira e Malcolm cuidou para que o garoto não ficasse no caminho. Enquanto esperavam-na acordar, Lucas contou para Malcolm o que havia acontecido ali, com todos os possíveis detalhes, enquanto conversavam, o menino permaneceu sentado abraçando suas pernas. Outro garoto adentrou o escritório, este era exatamente igual ao que já estava com eles. Ambos usavam camisa verde estampada, uma bermuda de pano surrada, um tênis de super-herói, tinham o mesmo corte de cuia em seus lisos cabelos pretos e o mesmo rosto. O que diferenciava era a mochila rosa que o que chegou carregava.
- Agora as coisas começaram a fazer sentido. - Lucas disse.
- Vocês mataram ela? - Ele perguntou.
- Não. E Não vamos matá-la, só queremos algumas respostas. - Malcolm respondeu.
           O garoto trocou olhares com seu, obviamente, irmão e quando o que estava sentado aos pés de Malcolm assentiu, ele se aproximou. Quando passou por Lucas, que estava sentado em uma cadeira, deixou a mochila em seu colo e se desculpou friamente. Foi sentar-se ao lado do irmão e então o abraçou.
- Será que ela vai demorar para acordar? Estou ficando com fome. - Disse Lucas.
- Tem uma casa abandonada do outro lado da rua. Se quiser posso ir lá e preparar algo pra comermos. - Disse Malcolm. - Ainda tenho alguns miojos comigo.
- Eu consegui alguns enlatados. - Lucas jogou a mochila rosa para Malcolm. - Estão aí dentro, vê se consegue inventar algo para nós.
- Tudo bem em te deixar a sós com esses dois a solta? - Malcolm apontou para os garotos sentados.
- Acho que eu consigo me virar com eles. - Lucas sorriu enquanto encarava os dois. - E mesmo se não, ainda tenho ela de refém. Se um deles se entregou de bom grado, ela deve ser importante para eles.
           Malcolm deixou o prédio. Lucas não tinha o que fazer senão esperar. Pensava no que ia perguntar para ela e em como ia perguntar. Essa seria a segunda chance dos três e ele realmente não queria ter que tomar atitudes mais severas para com aquelas crianças. Enquanto o tempo passava, Lucas tentava conversar com as crianças. Perguntava coisas bobas sobre super-heróis para tentar fazer com que um deles falasse, mas enquanto um deles continuava abraçado a suas pernas, o outro não o dava mais do que um olhar enraivecido.
            Malcolm chegou empilhando pratos com talheres em uma mão e abraçando uma grande vasilha fumegante com a outra. Lucas foi ajudá-lo e em uma mesa serviram miojo para cinco.
- Espero que vocês gostem de miojo sabor galinha com salsichas enlatadas. - Malcolm disse enquanto olhava para os meninos. - Foi tudo o que deu pra fazer.
           Os garotos olharam para Malcolm sem entender ao certo.
- Podemos comer também? - Um dos meninos falou.
- Claro que sim. Peguem um prato aqui na mesa. - Malcolm se sentou do lado de Lucas e espetou uma salsicha com seu garfo. - Quando você sentir fome também pode comer.
- Ela está apagada cara, não pode te ouvir. - Lucas disse quando viu que Malcolm falava com Patrícia.
- Não cara. - Malcolm riu. - Ela está acordada desde antes de amarrarmos ela. O fingimento é para conseguir tempo. Vamos descobrir o motivo logo logo.
           Os meninos se olharam quando Malcolm terminou de falar, ambos se levantaram, um deles foi até a mesa e pegou dois pratos, o outro foi até Patrícia e sussurrou algo no ouvido dela. Ele a ficou encarando por um tempo e então ela abriu os olhos. O menino se sentou no chão, ao lado de seu irmão, e pôs-se a comer.
- Tudo bem, vamos conversar. - Disse Patrícia.
- Primeiramente, gostaria de apresentar o Malcolm, Malcolm Strauss. - Lucas apontou seu garfo para Malcolm. - É graças a ele que estamos reunidos aqui.
- É um prazer. - Patrícia falou da forma mais irônica possível. - E a propósito, belo mata-leão. Você poderia ter me matado, seu brutamontes.
- Poderia sim, e é bom que lembre disso. - Malcolm respondeu.
- Vamos deixar as palavras de afeto para depois. - Lucas interveio. - Agora me diga Patrícia, por que se deu ao trabalho de me enganar? Quero dizer, não pode ter sido só pra me roubar. Tem comida o suficiente por aí, ainda não precisamos nos digladiar por ela.
           Patrícia olhou para os garotos e os viu entretidos com seus pratos de comida. Não aparentavam estar machucados, tampouco maltratados.
- Eu faço isso por eles. - Ela apontou para os garotos com a cabeça. - Ainda são novos. Enquanto podemos pegar comida em casas abandonas tudo bem, mas e depois? Eles precisam estar prontos para depois. Não imagino quanto tempo ficaremos por aqui. No início disseram que ia ser rápido, que logo estaríamos curados e livres. Mas depois de meses ainda estamos aqui.
- Quem são eles? Por que são importantes pra você? - Perguntou Malcolm.
           Ela hesitou em respondê-lo, mas Lucas a encorajou a continuar.
- Olha, estamos num momento crítico aqui. - Disse Lucas. - Estamos dando uma segunda chance pra vocês. Vocês podem contribuir e nos contar a verdade ou vocês podem mentir, ou omitir, e complicar ainda mais nossa situação. Quem sabe não saímos dessa juntos e como amigos?
- Tudo bem. - Disse Patrícia. - Eles são meus irmãos. O da esquerda é o Russel Donnoval e o da direita é o Mark Donnoval. Eu me chamo Elisabeth Donnoval, mas pode me chamar de Lisa.
- Pensei que fosse Patrícia. - Lucas franziu o cenho.
- Era mentira. - Respondeu Lisa.
- Então a história do padrasto...
- Também era mentira. - Lisa deu de ombros. - Desculpe por isso, eu acho.
- Eles são asiáticos, você, nem um pouco. - Malcolm ponderou.
- Eu fui adotada. - Respondeu Lisa. - Quando o médico disse que mamãe teria problemas em engravidar, nossos pais me adotaram, eu devia ter uns três anos. Quase um ano depois mamãe estava grávida de gêmeos. Foi uma grande surpresa para todos, uma bem agradável.
- Ah, desculpe, eu deveria ter percebido. - Malcolm enrubesceu.
- Não tem problemas. Sempre soube que fui adotada, e nunca vi problema algum nisso. Se não fosse por nossos pais, não sei como teria sido minha vida. A que eles me proporcionaram foi incrível. Bem, até isso tudo acontecer, mas não foi culpa deles.
- E o que houve com seus pais? - Lucas deixou se levar.
- Eles... - Lisa olhou de relance para seus irmãos e viu que eles começavam a prestar atenção na conversa. - Estão por aí. Tenho certeza que estão bem.
           Malcolm percebeu a sutil mudança no tom de voz de Lisa e a perda de brilho em seus olhos. Entendeu que aquele era um assunto a ser conversado em particular. Esperou veementemente que Lucas também o tivesse percebido.
- Quem amarrou seus nós? - Lucas perguntou. - Digo, os que estavam amarrados quando eu te encontrei.
- Aquilo foi obra do Mark ali. - Disse ela com um sorriso estampado no rosto. - Ele era um escoteiro. E tem o dom para esse tipo de coisa.
           Mark corou enquanto mastigava sua salsicha.
- Nossa, isso é incrível. - Disse Lucas. - Sabe Mark, eu também fui um escoteiro. Sabia que conhecia aqueles nós. Eles estavam muito bons. Tão bons que eu vou até relevar você ter dito que eu sou fácil de enganar.
- Obrigado. - Mark respondeu em um tom bem tímido.
           Lisa sorriu enquanto olhava para os irmãos. Seu sorriso se manteve até encontrar os olhos de Lucas. Ela disfarçou o olhar, meio sem jeito.
- Acho que devo agradecê-los por dar comida a eles. Se fossem outras pessoas teriam, provavelmente, matado nós três. - Disse Lisa.
           Lucas olhou para Malcolm e ele assentiu com um gesto. Ambos se levantaram. Lucas foi até as costas de Lisa e desatou os nós que prendiam-na. Malcolm se aproximou, enquanto ela massageava os pulsos, e lhe deu um prato cheio.
- Vocês tem certeza que querem me deixar solta?
- Não sei. Vamos descobrir. - Malcolm disse se sentando novamente. - Se quiser fugir, fuja. Lucas não acha que você seja uma má pessoa e, se não arrumarem problemas pra nós novamente, não teremos motivos para machucar vocês. Vocês podem escolher ficar também. A gente continua nossa conversa, nos conhecemos melhor e, quem sabe, não podemos permanecer juntos.
- Acho que podemos ficar um pouco. Ver onde isso vai nos levar. - Disse Lisa, nos intervalos de sua mastigação.
- Querem mais? - Lucas disse para os gêmeos.
- Eu...eu aceito. - Disse Mark timidamente.
           Lucas se aproximou para recolher o prato do garoto, mas o irmão pegou o prato e se levantou de súbito, encarando Lucas com uma carranca.
- Deixa que eu mesmo nos sirvo. - Russel foi de encontro a tigela.
- Tudo bem. - Lucas disse, um pouco pasmado. Voltou a se sentar.
- Lisa, eu entendi seu motivo, mas como exatamente você pensava em escapar? - Perguntou Lucas. - Só existe uma entrada pra esse edifício, e eu estava nela.
- Tem um caminho improvisado com tábuas de madeira lá no terraço que dão para o terraço do prédio ao lado. - Disse Malcolm. - Forte o suficiente para aguentar esses três.
- É. - Lisa parecia um tanto espantada. - Como você sabe?
- Eu cheguei no edifício e subi direto ao terraço. - Respondeu Malcolm. - Queria me certificar de que o membro dos Hienas tinha me perdido. Desci quando vi o Russel saindo do prédio. A mochila rosa chamou minha atenção. Pouco depois ouvi você gritando e me aproximei, calmamente, por trás. Reconheci Lucas, Lucas me reconheceu, e o resto você sabe.
- E por falar nisso, algum problema com o punk?
- Não, Lucas. Ele me perseguiu por um tempo, mas acho que perdeu sangue demais para continuar. Subi no terraço pra me certificar. Nunca se sabe né...
- Um dos Hienas estava atrás de você? - Indagou Lisa. - Mas o território deles fica longe daqui.
- Esse em específico teve problemas conosco. - Lucas respondeu. - Nada com o qual não consigamos lidar. Lisa, quantos anos vocês tem?
- Eu tenho dezessete. Mark e Russel tem treze.
- Sério? - Lucas se surpreendeu. - Poderia jurar que você era mais velha.
- Eu pareço mais velha? - Disse com certa animosidade.
- Não, não. - Lucas respondeu de imediato. - É só que... Aquela sua história inventada, ela soou um tanto madura...
- Ah, sim. - Lisa se aliviou. - Falar de temas sexuais faz com que homens percam a atenção. Quando atuo todo movimento é planejado.
- Por isso está usando essas roupas? - Perguntou Malcolm.
- Qual o problema com minhas roupas? - Lisa soava irritada.
- Não tem problema nen... - Lucas se desculpava.
- São reveladoras demais. - Malcolm o cortou.
           Um silêncio súbito pairou no ar. Mark e Russel se olharam e então olharam para sua irmã, que permanecia atônita com a franqueza de Malcolm. Então os três irmãos riram juntos. Russel riu menos. Lucas os acompanhou com uma risada nervosa, sem saber bem o porquê.
- Sim. - Respondeu Lisa. - É por isso sim. Quanto mais sensual eu parecer, mais fácil é tirar a atenção deles. E é aí que o Russel vem por trás e os ataca enquanto indefesos.
- Que tática peculiar. - Ponderou Malcolm.
- E você estava aqui esperando por qualquer um que entrasse? - Perguntou Lucas.
- Na verdade o Russel estava de vigia e viu sua mochila rosa a quarteirões de distância. Então ele me acordou. Preparamos o palco pro caso de você vir para cá. - Disse Lisa se levantando e deixando o prato na mesa. Então voltou e sentou de volta em sua cadeira. - Se não fosse o Russel pisando naquele pedaço de plástico barulhento ali tudo teria dado certo. Mas pra ser sincera, estou feliz que não deu.
           Lucas sorriu.
- E vocês, por que estão aqui? Não parece que tenha sido coincidência.
           Malcolm e Lucas passaram o resto da manhã contando suas histórias para os três irmãos, que pareciam se saciar com elas. Depois de um tempo, Mark sentou no colo de sua irmã e começou a socializar também. Ele era um garoto bem tímido, mas depois de algumas risadas ele conseguiu se soltar. Russel era um tanto mais rabugento e calado, mas no final conseguiu se mostrar indiferente com aquela situação, o que para ele parecia ser o mais próximo de "confortável" possível. Lisa riu bastante das brincadeiras de Lucas e conseguiu entender um pouco melhor a figura de Malcolm como um cara cauteloso mas de bom coração. Acabaram, por fim, decidindo permanecer juntos como um grupo. Malcolm e Lucas se beneficiariam do conhecimento que os três irmãos tinham daquela parte da cidade. Já os três se beneficiariam da segurança que os garotos mais velhos providenciavam.
- O que pretendem fazer agora? - Malcolm perguntou.
- Hoje nós planejávamos ir mais para o sul. - Lisa respondeu. - Para a casa de uma tia nossa.
- Algum motivo em especial? - Disse Lucas.
- Não, nenhum, só queremos saber como ela está. - Lisa olhou para os irmãos. - Vocês dois, vão para o terraço e deem uma olhada nas redondezas. Certifiquem que não há ninguém por perto para que possamos sair.
           Os dois garotos assentiram e correram na frente. Lucas e Malcolm trocaram um olhar de aprovação. Seja o que fosse, ela não queria falar na frente dos irmãos. Depois dos garotos passarem pela porta Lisa suspirou e abriu o jogo.
- Uma semana atrás, eu chequei todo corpo fardado que encontrei na rua. Todos os coldres estavam vazios e alguns nem coldre mais tinham. Uns anos atrás eu ouvi por acidente meus pais comentando que o bairro onde minha tia morava estava ficando perigoso e que até uma arma ela havia comprado para se proteger. Eu estou indo pra lá procurar essa arma.
- Entendo. - Disse Malcolm. - Mas acha realmente necessário?
- Sou uma garota de dezessete anos tomando conta de dois garotos de treze no meio desse pseudo-apocalipse. Não quero ter que usar uma arma, mas é melhor do que precisar e não ter uma.
- Mas por que esconde isso deles? - Perguntou Malcolm.
- O Mark é dócil demais, não machucaria uma mosca. Já o Russel, ele é um pouco mais maduro, mas o máximo que ele faz é bater com uma chave inglesa na cabeça de uma pessoa para desacordá-la. Não quero nem pensar na possibilidade de ter que matar alguém. E também não quero que eles o pensem.
           Lucas e Malcolm trocaram olhares, tinham contado tudo pra eles, deixaram apenas os homicídios de fora em respeito aos mais novos. Para os três, a razão de um Hiena estar perseguindo eles era por ele tê-los visto roubando de seu território. Cedo ou tarde eles contariam para Lisa que sangue já havia encharcado suas mãos, mas agora sabiam que não seria uma conversa tão fácil.
- Quando acordei naquela manhã. - Lisa continuou. - Percebi que meus pais ainda não tinham acordado. Foi o quarto dia depois do isolamento da cidade. Fui até o quarto deles e os encontrei mortos, ainda na cama. - Sua voz soava bem áspera. - Mark e Russel ainda não tinham acordado. Carreguei meus pais pela escada e os escondi no porão. Tranquei a porta e dei descarga na chave. Quando meus irmãos acordaram, disse a eles que nossos pais tinham saído para descobrir a cura. Nosso pai era médico, o que facilitou minha mentira, disse também que mamãe o acompanhara para que ele não se sentisse sozinho.
- Desculpe por te fazer contar. - Disse Lucas, colocando a mão em seu ombro.
- Tudo bem. A verdade é que eu já não sei se, depois de todo esse tempo, eles ainda acreditam na minha mentira. Eles já viram muitos corpos por aí. No início não foi fácil pra gente, bom, não deve ter sido fácil pra ninguém, mas agora, mesmo depois de se acostumarem com o fato da morte estar tão próxima da gente, não consigo contar a verdade pra eles. Não vou pedir para que mintam por mim, mas, por favor, evitem tocar nesse assunto daqui pra frente.
- Tudo bem. - Disse Malcolm. - Não acontecerá.
- Obrigada.
           Com um sorriso forçado, Lisa foi em direção a saída.
- Peguem minha mochila no banheiro das mulheres. - Disse ela, enquanto saía. Vou lá em cima chamá-los e estamos de saída.
- Sim senhora. - Lucas respondeu.