Os cinco mais novos Formigas foram com seus
guias em direção ao ponto de encontro combinado por rádio. Pelo caminho foram
encorajados por um dos recrutadores a conversar, tomar aquela oportunidade para
se conhecerem melhor. Rupert Kyle era o mais velho, tinha quarenta e seis anos,
um metro e oitenta e cinco de altura e um corpo bem musculoso. Seu rosto tinha
algumas rugas e sua barba era grisalha, fora isso ele aparentava até ser mais
novo. Sua careca reluzia a luz do sol da tarde. Ele usava uma regata cinza bem
justa ao corpo, calça jeans e um coturno militar. Apesar do visual intimidador,
ele se mostrava bem amigável e afável. Contou como tinha sido sua trajetória
até se juntar aos Formigas e ouviu de bom grado as histórias de Lucas. O outro
recrutador se chamava Arthur Soriani. Era um homem negro de quarenta e três
anos, um metro e setenta e oito de altura. Seu cabelo e barba raspados bem
rente a pele se conectavam. Tinha um físico bem definido, mas não era
musculoso. Usava uma camisa social azul escura, bermuda de brim e um par de
tênis esportivos brancos. Ele tinha uma tatuagem no braço que saia pela manga
de sua camisa, parecia um tentáculo de polvo ou talvez fosse a cauda de uma
serpente, Russel chegou a perguntar a respeito, mas Arthur se mostrou do tipo
reservado. Ficava sempre atrás do grupo e não falava nada.
Vinham carregando cada um, com exceção
dos irmãos Donnoval, duas sacolas de viagem um pouco pesadas, carregadas de
mantimentos. Rupert explicava o que estavam prestes a fazer...
- Estes mantimentos serão entregues para um
grupo dos Eclipse.
- Qual é exatamente a conexão dos Eclipse com
os Formigas? - Inquiriu Malcolm.
- Nós temos um trato com esse grupo em
específico. Nós os fornecemos mantimentos e eles nos fornecem sua proteção.
- Proteção de que exatamente? - Perguntou
Lucas. - Alguma coisa ameaça os Formigas?
- No momento não, mas se algo surgir temos o
direito de demandar a proteção desse grupo dos Eclipse.
- Acho que não estão familiarizados com o
método de funcionamento dos Eclipse... - Rupert esperou, inutilmente, ser
interrompido. - Bom, então deixe-me lhes explicar. Os Eclipse funcionam com
bases individuais. Diferente dos Hienas do Asfalto, onde todos os membros são
comandados por um líder, os Eclipse trabalham para seus respectivos
comandantes.
- Mas não existe um líder mais influente que os
comandantes? - Perguntou Russel.
- Existe sim. Sua base fica no centro do
território, mas apesar dos comandantes jurarem lealdade para seu líder e doar
uma certa quantidade de suprimentos regularmente, eles não fazem muito mais que
isso. Cada comandante ganha a liberdade de usar o nome e logo dos Eclipse. Por
serem um clã grande, isso os traz certa moral. Estes então se sitiam em alguma
região ainda não dominada.
- É uma estratégia interessante. - Ponderou
Malcolm.
- Como assim? - Indagou Lisa.
- Bom, se cada comandante controla uma base,
isso significa que não há território deles desprotegido. - Explicou Malcolm. -
No caso dos Hienas, eles são numerosos e fortes em seu centro, mas suas
fronteiras acabam ficando desprotegidas.
- Exatamente. - Disse Rupert. - Mas eles também
tem seu ponto fraco.
- Imagino que seja o egoísmo de seus
comandantes. - Supôs Malcolm.
- Novamente correto. - Rupert disse com um
olhar de aprovação para Malcolm. - Seus comandantes trabalham de forma
autônoma. Se uma das bases dos Eclipse for atacada, os outros comandantes não
tem obrigação de ajudar, e como não tem muito a ganhar com isso, julgam que o
risco de perder seus soldados não vale a pena. Então não o fazem.
- Considerando que todo comandante dos Eclipse
seja um maníaco por poder, isso faz total sentido. - Comentou Lucas.
Chegaram em um cruzamento de vias no
meio da cidade. Ao redor, algumas lojas fechadas, corpos de pessoas e cães
apodrecendo pelas ruas, alguns carros danificados pelo tempo e uma pequena
praça, onde o encontro seria realizado. Antes mesmo de entrarem na praça, viram
os membros dos Eclipse os esperando do lado de uma fonte desativada. Eram três
homens. Estavam vestidos casualmente, mas em suas roupas existia o logo dos
Eclipse, um círculo branco semipreenchido por um círculo preto, pintado com
tinta, de uma maneira um tanto desleixada. O homem da esquerda segurava uma
pistola, o do centro aparentava estar desarmado, o da direita portava um cutelo
bem brilhante. Eles colocaram as sacolas na frente dos homens, então Rupert pediu
para os cinco que se afastassem um pouco enquanto ele e Arthur finalizavam o
encontro. Eles assentiram. Não queriam ficar por perto daqueles homens armados.
Rupert e Arthur tomaram a dianteira. Eles observaram enquanto o homem do meio
checava todas as sacolas, depois o mesmo homem sussurrou algo para Rupert. Eles
não estavam perto o suficiente para ouvir sussurros. Rupert respondeu
"Desculpe, mas tivemos uns problemas internos. Isso foi tudo que
conseguimos. Mas compensaremos assim que possível.", foi então que o homem
do meio se irritou e gritou.
- Você acha que isso é uma brincadeira? -
Berrava o homem. - Nós temos um trato bem simples. Vocês fornecem as dez
sacolas de mantimentos e nós não destruímos aquele seu bando de velhos e
crianças.
- Eu sei. Nos perdoe. - Rupert não pareceu se
abalar. - Sentimos por não poder entregar todo o combinado, mas...
- Mas nada. - O homem socou o rosto de Rupert
que sequer se mexeu. - Nós temos um acordo. Não pretendo voltar para minha base
no prejuízo.
Malcolm estava fervendo por dentro.
Enquanto pensava que o tratado os oferecia proteção, tudo bem, era uma coisa. Mas
descobrir que na verdade as dez sacolas de alimento, o que era um bem muito
precioso para os Formigas, estavam sendo tributadas em troca do grupo não ser
atacado por um bando de aproveitadores, era demais. Lucas estava mais
impressionado pelo fato de Rupert não ter nem ligado para o soco que recebeu.
Ele era um cara simpático, mas um soco desse com certeza o tiraria do sério. Arthur
por sua vez permanecia do lado de Rupert, sem dizer nada e sem se abalar pelos
fatos.
- Na próxima entrega conseguiremos doze
sacolas. - Disse Rupert. - Te dou minha palavra.
- Na próxima entrega queremos vinte sacolas.
Isso vai os ensinar a cumprir o seu papel. Formigas ridículas.
- Sejamos razoáveis. - Pediu Rupert. - Não
podemos oferecer essa quantia. Doze sacolas. Te prometemos doze sacolas.
- Engula suas promessas. - O homem olhou ao redor e sorriu ao ver os
cinco por perto. - Você, venha até aqui. - Disse então, apontando o dedo para o
grupo.
Malcolm e Lucas seguiram o dedo do
homem com o olhar. A preocupação tomou conta deles quando perceberam que a
trajetória terminava em Lisa.
- Está tudo bem. – Ela falou, em tom de
lamúria. – Prometo que não vou fazer nada precipitado.
Ela soltou as mãos de seus irmãos e
passou por entre Malcolm e Lucas. Ao chegar ao lado de Rupert ela percebeu que
os quatro garotos a tinham seguido. No fundo isso a deixou feliz. Ela
permaneceu calada enquanto o homem desfrutava de seu sorriso de triunfo.
- Eis aqui nossa garantia. - O homem do meio a
avaliou mais de perto com os olhos. - Essa belezinha vai nos acompanhar por um
tempo até que sejam entregues nossas vinte sacolas.
Lucas pensou em fazer algo, mas antes
que um plano se concretizasse em sua mente Malcolm o segurou firme pelo ombro,
enquanto ainda mantinha seu olhar severo no homem do meio. O homem estalou o
dedo e seu capanga da direita, o com o cutelo, se aproximou e agarrou Lisa pelo
braço. Russel agiu.
- Tira suas mãos nojentas dela! - Exclamou
enquanto socava os testículos do homem.
- Minhas bolas! - Urrou o homem, agora
encolhido no chão.
Lisa inalou nitidamente ao se assustar
com o barulho do cutelo de ferro atingindo o chão, bem ao lado de seu pé. O homem
da esquerda apontou a pistola para Russel. Lisa se colocou na frente do irmão.
- Parece que temos uma pequena besta aqui. - O
homem do meio riu. - Está tudo bem aí? - Perguntou enquanto empurrava com o pé
seu companheiro caído.
- Deixe-me. Matar. O moleque. - Articulou, com
certa dificuldade, o homem caído.
- Essa garota é importante para você? -
Perguntou para Russel. - O que ela é sua? É muito nova para ser sua mãe. É sua
irmã?
A carranca de Russel o entregou.
- Que tal se te levássemos no lugar dela? Isso
deixaria ela mais irritada ainda não é?
- O homem dizia enquanto se aproximava de Russel. - O que acha de eu te
levar pra nossa base e preocupar bastante a sua irmãzinha... - O homem agachou
para olhar nos olhos do garoto. - Você gostaria disso?
Russel cuspiu na boca do homem enquanto
ele proferia suas indagações. O homem certamente não esperava aquilo. Ele
correu desajeitadamente e vomitou na fonte desativada. Se a situação na qual
estavam não estivesse tão séria, talvez Lucas e Malcolm gargalhassem. O homem
limpou sua boca na gola da camisa e então olhou para Russel.
- Vou me certificar de que sua estadia no nosso
covil seja deveras agradável. - Disse o homem, novamente estalando o dedo. -
Pegue esse moleque de merda.
- Qual dos dois. É difícil de distinguir. -
Ironizou o homem da pistola enquanto puxava Russel pelo cabelo.
Lisa quis intervir, mas Lucas a segurou
pelo pulso.
- Dois? Do que está falando? - O homem escaneou
seu olhar pelo grupo e então percebeu uma sombra que se escondia por detrás dos
outros. - Mas o que temos aqui?
- Pare, por favor. - Lisa lamentou. - Deixe-os
em paz. Me leve.
- As coisas estão ficando cada vez mais
interessantes. - O homem tateou suas costas e trouxe sua mão de volta no porte
de uma pistola. - Aproxime-se moleque.
Lisa se pôs entre o homem e seu outro
irmão.
- Por favor. - Pranteou. - Eu suplico que os
deixe em paz. Farei qualquer coisa que me pedir. Me leve no lugar deles.
- São apenas crianças. Não se rebaixe a isso. -
Interveio Rupert.
- Fique quieto. Se isso está acontecendo só tem
a si mesmo a quem culpar. - O homem juntou sua pistola a de seu amigo,
apontando-a para a cabeça de Russel. - Garoto, se aproxime, ou então estourarei
os miolos desse aqui.
- Não. - Lisa gritou.
Malcolm e Lucas a seguraram enquanto
Mark caminhava em direção ao homem. Ele olhou nos olhos de sua irmã. Tudo que
ela conseguiu enxergar naquele olhar foi uma decisão e uma súplica para que ela
não fizesse nada idiota. Muito já estava sendo posto em risco.
- Gêmeos! Quem diria... - Disse o homem
apontando sua arma agora para a cabeça de Mark enquanto o segurava pelo ombro.
- Levante logo desse chão. - Chutou seu amigo caído. - Estamos de saída.
O terceiro homem recuperou seu cutelo e
levantou-se do chão, olhou furiosamente para os irmãos, não sabia ao certo qual
dos dois odiar. Os garotos foram escoltados até um carro próximo enquanto o
resto assistia. Lisa estava em prantos. Lucas a abraçou e a levou para longe
dali. Malcolm e Arthur estavam com uma expressão séria no rosto e Rupert ajudou
os homens a carregar o carro com as sacolas. Malcolm o ouviu tentar,
inutilmente, negociar algo uma última vez antes dos homens irem embora.
Depois de muito tempo, quando o sol já
estava se pondo, eles conseguiram convencer Lisa de voltar. O caminho de volta foi
uma experiência horrível. Cada passo que Lisa dava em direção à casa era um
passo de distância para mais longe de seus irmãos. Ela sabia que Russel seria
torturado, e a personalidade do garoto não o ajudaria. Não havia nada que ela
podia fazer para ajudá-lo. Rupert disse que se juntassem vinte sacolas de
mantimentos para a entrega, conseguiriam que os Eclipse os devolvessem no prazo
de algumas semanas. Quem marcava o dia da troca eram os Eclipse, e nunca houve
mais de um mês de distância entre uma troca e outra. Rupert estimava que com
apenas oito sacolas de suprimento eles entrariam em contato novamente por volta
de duas semanas. Malcolm e Lucas conversaram entre si e decidiram pedir para se
juntarem ao grupo de pilhagem. Já era algo com o qual estavam acostumados e, se
dessem tudo de si, talvez conseguissem mais comida para o grupo. Planejaram
conversar com Lisa e pedir para que ela se juntasse ao grupo de plantio. Mas
decidiram ter a tal conversa depois. Lisa queria ficar sozinha. Ela andou todo
o percurso de volta afastada do grupo, mais ainda que Arthur. Rupert se
desculpou desajeitadamente pelo rumo que a situação havia tomado, mas Malcolm e
Lucas sabiam que não havia sido culpa dele.
Quando chegaram já era noite. Rupert e Arthur
se dirigiram ao prédio principal para reportar sobre o acontecido. Malcolm,
Lucas e Lisa foram para a casa 255 da rua onze, seu novo lar. Lá dentro encontraram
sacolas plásticas endereçadas individualmente, continham roupas novas. Na mesa
da sala, cinco quentinhas em pratos de alumínio, acompanhadas de talheres, os
esperavam. Nenhum dos três estava com fome, não depois de tudo aquilo. Lisa se
encolheu em um sofá e Lucas foi junto para tentar confortá-la na medida do
possível. Malcolm aproveitou a deixa para tomar seu banho. Enquanto a água caía
em seu rosto ele pensava em como poderia ter contornado aquela situação, se
Rupert tivesse explicado com mais sinceridade a situação na qual eles se
encontravam, talvez pudessem ter sido mais cautelosos em relação a ficarem tão
expostos. Agora era tarde demais, tudo o que podiam fazer era jogar pelas
regras e torcer para que não maltratassem muito os gêmeos. Malcolm saiu do
banho com suas roupas novas e viu que Lisa havia adormecido no colo de Lucas.
Ele se sentou em uma poltrona na sala e encarou sua quentinha. Quando Mégara
disse que elas seriam entregues regularmente em suas casas ele mal pode esperar
pelo momento, mas agora, mesmo com ela ao alcance de sua mão, ele não tinha
interesse. Mesmo assim a pegou, sabia que teria de manter sua saúde. Não podia
deixar que nada prejudicasse sua capacidade de querer viver. Ele deu uma das
quentinhas na mão de Lucas, que captando o olhar preocupado do amigo, aceitou.
Malcolm se levantou e procurou a cozinha, em busca de alguma bebida. Foi
interrompido antes de concluir sua busca por uma calma batida na porta da
frente. Lisa acordou com o barulho e Lucas atendeu a porta. Malcolm adentrou a
sala enquanto Lucas pedia para que seu visitante entrasse. Era Arthur, o
recrutador mudo que os havia acompanhado durante aquele dia. Os três
estranharam a visita, foi deveras inesperada.
- Preciso falar com vocês três e precisa ser
agora. - Disse Arthur, revelando sua grossa voz.
- Claro. Por favor sente-se. - Malcolm o levou
ao sofá.
- Eu poderia te oferecer algo, mas a verdade é
que eu ainda nem sei onde fica a cozinha, ou o que temos nela. - Lucas disse.
- Não tem problema. Pretendo ser breve. - Falou
Arthur. - Eu venho aqui na intenção de recrutá-los.
- Desculpe, mas, já somos integrantes dos
Formigas. - Disse Malcolm. - Fomos recrutados nessa tarde.
-
Não venho recrutá-los em nome dos Formigas. Venho em nome dos Sombra.