sexta-feira, 24 de abril de 2015

Lótus - Capítulo 6

           Os cinco mais novos Formigas foram com seus guias em direção ao ponto de encontro combinado por rádio. Pelo caminho foram encorajados por um dos recrutadores a conversar, tomar aquela oportunidade para se conhecerem melhor. Rupert Kyle era o mais velho, tinha quarenta e seis anos, um metro e oitenta e cinco de altura e um corpo bem musculoso. Seu rosto tinha algumas rugas e sua barba era grisalha, fora isso ele aparentava até ser mais novo. Sua careca reluzia a luz do sol da tarde. Ele usava uma regata cinza bem justa ao corpo, calça jeans e um coturno militar. Apesar do visual intimidador, ele se mostrava bem amigável e afável. Contou como tinha sido sua trajetória até se juntar aos Formigas e ouviu de bom grado as histórias de Lucas. O outro recrutador se chamava Arthur Soriani. Era um homem negro de quarenta e três anos, um metro e setenta e oito de altura. Seu cabelo e barba raspados bem rente a pele se conectavam. Tinha um físico bem definido, mas não era musculoso. Usava uma camisa social azul escura, bermuda de brim e um par de tênis esportivos brancos. Ele tinha uma tatuagem no braço que saia pela manga de sua camisa, parecia um tentáculo de polvo ou talvez fosse a cauda de uma serpente, Russel chegou a perguntar a respeito, mas Arthur se mostrou do tipo reservado. Ficava sempre atrás do grupo e não falava nada.
           Vinham carregando cada um, com exceção dos irmãos Donnoval, duas sacolas de viagem um pouco pesadas, carregadas de mantimentos. Rupert explicava o que estavam prestes a fazer...
- Estes mantimentos serão entregues para um grupo dos Eclipse.
- Qual é exatamente a conexão dos Eclipse com os Formigas? - Inquiriu Malcolm.
- Nós temos um trato com esse grupo em específico. Nós os fornecemos mantimentos e eles nos fornecem sua proteção.
- Proteção de que exatamente? - Perguntou Lucas. - Alguma coisa ameaça os Formigas?
- No momento não, mas se algo surgir temos o direito de demandar a proteção desse grupo dos Eclipse.
- Você continua dizendo, "esse grupo". - Disse Lisa. - Por que está sendo tão específico?
- Acho que não estão familiarizados com o método de funcionamento dos Eclipse... - Rupert esperou, inutilmente, ser interrompido. - Bom, então deixe-me lhes explicar. Os Eclipse funcionam com bases individuais. Diferente dos Hienas do Asfalto, onde todos os membros são comandados por um líder, os Eclipse trabalham para seus respectivos comandantes.
- Mas não existe um líder mais influente que os comandantes? - Perguntou Russel.
- Existe sim. Sua base fica no centro do território, mas apesar dos comandantes jurarem lealdade para seu líder e doar uma certa quantidade de suprimentos regularmente, eles não fazem muito mais que isso. Cada comandante ganha a liberdade de usar o nome e logo dos Eclipse. Por serem um clã grande, isso os traz certa moral. Estes então se sitiam em alguma região ainda não dominada.
- É uma estratégia interessante. - Ponderou Malcolm.
- Como assim? - Indagou Lisa.
- Bom, se cada comandante controla uma base, isso significa que não há território deles desprotegido. - Explicou Malcolm. - No caso dos Hienas, eles são numerosos e fortes em seu centro, mas suas fronteiras acabam ficando desprotegidas.
- Exatamente. - Disse Rupert. - Mas eles também tem seu ponto fraco.
- Imagino que seja o egoísmo de seus comandantes. - Supôs Malcolm.
- Novamente correto. - Rupert disse com um olhar de aprovação para Malcolm. - Seus comandantes trabalham de forma autônoma. Se uma das bases dos Eclipse for atacada, os outros comandantes não tem obrigação de ajudar, e como não tem muito a ganhar com isso, julgam que o risco de perder seus soldados não vale a pena. Então não o fazem.
- Considerando que todo comandante dos Eclipse seja um maníaco por poder, isso faz total sentido. - Comentou Lucas.
           Chegaram em um cruzamento de vias no meio da cidade. Ao redor, algumas lojas fechadas, corpos de pessoas e cães apodrecendo pelas ruas, alguns carros danificados pelo tempo e uma pequena praça, onde o encontro seria realizado. Antes mesmo de entrarem na praça, viram os membros dos Eclipse os esperando do lado de uma fonte desativada. Eram três homens. Estavam vestidos casualmente, mas em suas roupas existia o logo dos Eclipse, um círculo branco semipreenchido por um círculo preto, pintado com tinta, de uma maneira um tanto desleixada. O homem da esquerda segurava uma pistola, o do centro aparentava estar desarmado, o da direita portava um cutelo bem brilhante. Eles colocaram as sacolas na frente dos homens, então Rupert pediu para os cinco que se afastassem um pouco enquanto ele e Arthur finalizavam o encontro. Eles assentiram. Não queriam ficar por perto daqueles homens armados. Rupert e Arthur tomaram a dianteira. Eles observaram enquanto o homem do meio checava todas as sacolas, depois o mesmo homem sussurrou algo para Rupert. Eles não estavam perto o suficiente para ouvir sussurros. Rupert respondeu "Desculpe, mas tivemos uns problemas internos. Isso foi tudo que conseguimos. Mas compensaremos assim que possível.", foi então que o homem do meio se irritou e gritou.
- Você acha que isso é uma brincadeira? - Berrava o homem. - Nós temos um trato bem simples. Vocês fornecem as dez sacolas de mantimentos e nós não destruímos aquele seu bando de velhos e crianças.
- Eu sei. Nos perdoe. - Rupert não pareceu se abalar. - Sentimos por não poder entregar todo o combinado, mas...
- Mas nada. - O homem socou o rosto de Rupert que sequer se mexeu. - Nós temos um acordo. Não pretendo voltar para minha base no prejuízo.
           Malcolm estava fervendo por dentro. Enquanto pensava que o tratado os oferecia proteção, tudo bem, era uma coisa. Mas descobrir que na verdade as dez sacolas de alimento, o que era um bem muito precioso para os Formigas, estavam sendo tributadas em troca do grupo não ser atacado por um bando de aproveitadores, era demais. Lucas estava mais impressionado pelo fato de Rupert não ter nem ligado para o soco que recebeu. Ele era um cara simpático, mas um soco desse com certeza o tiraria do sério. Arthur por sua vez permanecia do lado de Rupert, sem dizer nada e sem se abalar pelos fatos.
- Na próxima entrega conseguiremos doze sacolas. - Disse Rupert. - Te dou minha palavra.
- Na próxima entrega queremos vinte sacolas. Isso vai os ensinar a cumprir o seu papel. Formigas ridículas.
- Sejamos razoáveis. - Pediu Rupert. - Não podemos oferecer essa quantia. Doze sacolas. Te prometemos doze sacolas.
- Engula suas promessas. -  O homem olhou ao redor e sorriu ao ver os cinco por perto. - Você, venha até aqui. - Disse então, apontando o dedo para o grupo.
           Malcolm e Lucas seguiram o dedo do homem com o olhar. A preocupação tomou conta deles quando perceberam que a trajetória terminava em Lisa.
- Está tudo bem. – Ela falou, em tom de lamúria. – Prometo que não vou fazer nada precipitado.
           Ela soltou as mãos de seus irmãos e passou por entre Malcolm e Lucas. Ao chegar ao lado de Rupert ela percebeu que os quatro garotos a tinham seguido. No fundo isso a deixou feliz. Ela permaneceu calada enquanto o homem desfrutava de seu sorriso de triunfo.
- Eis aqui nossa garantia. - O homem do meio a avaliou mais de perto com os olhos. - Essa belezinha vai nos acompanhar por um tempo até que sejam entregues nossas vinte sacolas.
           Lucas pensou em fazer algo, mas antes que um plano se concretizasse em sua mente Malcolm o segurou firme pelo ombro, enquanto ainda mantinha seu olhar severo no homem do meio. O homem estalou o dedo e seu capanga da direita, o com o cutelo, se aproximou e agarrou Lisa pelo braço. Russel agiu.
- Tira suas mãos nojentas dela! - Exclamou enquanto socava os testículos do homem.
- Minhas bolas! - Urrou o homem, agora encolhido no chão.
           Lisa inalou nitidamente ao se assustar com o barulho do cutelo de ferro atingindo o chão, bem ao lado de seu pé. O homem da esquerda apontou a pistola para Russel. Lisa se colocou na frente do irmão.
- Parece que temos uma pequena besta aqui. - O homem do meio riu. - Está tudo bem aí? - Perguntou enquanto empurrava com o pé seu companheiro caído.
- Deixe-me. Matar. O moleque. - Articulou, com certa dificuldade, o homem caído.
- Essa garota é importante para você? - Perguntou para Russel. - O que ela é sua? É muito nova para ser sua mãe. É sua irmã?
           A carranca de Russel o entregou.
- Que tal se te levássemos no lugar dela? Isso deixaria ela mais irritada ainda não é?  - O homem dizia enquanto se aproximava de Russel. - O que acha de eu te levar pra nossa base e preocupar bastante a sua irmãzinha... - O homem agachou para olhar nos olhos do garoto. - Você gostaria disso?
           Russel cuspiu na boca do homem enquanto ele proferia suas indagações. O homem certamente não esperava aquilo. Ele correu desajeitadamente e vomitou na fonte desativada. Se a situação na qual estavam não estivesse tão séria, talvez Lucas e Malcolm gargalhassem. O homem limpou sua boca na gola da camisa e então olhou para Russel.
- Vou me certificar de que sua estadia no nosso covil seja deveras agradável. - Disse o homem, novamente estalando o dedo. - Pegue esse moleque de merda.
- Qual dos dois. É difícil de distinguir. - Ironizou o homem da pistola enquanto puxava Russel pelo cabelo.
           Lisa quis intervir, mas Lucas a segurou pelo pulso.
- Dois? Do que está falando? - O homem escaneou seu olhar pelo grupo e então percebeu uma sombra que se escondia por detrás dos outros. - Mas o que temos aqui?
- Pare, por favor. - Lisa lamentou. - Deixe-os em paz. Me leve.
- As coisas estão ficando cada vez mais interessantes. - O homem tateou suas costas e trouxe sua mão de volta no porte de uma pistola. - Aproxime-se moleque.
           Lisa se pôs entre o homem e seu outro irmão.
- Por favor. - Pranteou. - Eu suplico que os deixe em paz. Farei qualquer coisa que me pedir. Me leve no lugar deles.
- São apenas crianças. Não se rebaixe a isso. - Interveio Rupert.
- Fique quieto. Se isso está acontecendo só tem a si mesmo a quem culpar. - O homem juntou sua pistola a de seu amigo, apontando-a para a cabeça de Russel. - Garoto, se aproxime, ou então estourarei os miolos desse aqui.
- Não. - Lisa gritou.
           Malcolm e Lucas a seguraram enquanto Mark caminhava em direção ao homem. Ele olhou nos olhos de sua irmã. Tudo que ela conseguiu enxergar naquele olhar foi uma decisão e uma súplica para que ela não fizesse nada idiota. Muito já estava sendo posto em risco.
- Gêmeos! Quem diria... - Disse o homem apontando sua arma agora para a cabeça de Mark enquanto o segurava pelo ombro. - Levante logo desse chão. - Chutou seu amigo caído. - Estamos de saída.
           O terceiro homem recuperou seu cutelo e levantou-se do chão, olhou furiosamente para os irmãos, não sabia ao certo qual dos dois odiar. Os garotos foram escoltados até um carro próximo enquanto o resto assistia. Lisa estava em prantos. Lucas a abraçou e a levou para longe dali. Malcolm e Arthur estavam com uma expressão séria no rosto e Rupert ajudou os homens a carregar o carro com as sacolas. Malcolm o ouviu tentar, inutilmente, negociar algo uma última vez antes dos homens irem embora.
           Depois de muito tempo, quando o sol já estava se pondo, eles conseguiram convencer Lisa de voltar. O caminho de volta foi uma experiência horrível. Cada passo que Lisa dava em direção à casa era um passo de distância para mais longe de seus irmãos. Ela sabia que Russel seria torturado, e a personalidade do garoto não o ajudaria. Não havia nada que ela podia fazer para ajudá-lo. Rupert disse que se juntassem vinte sacolas de mantimentos para a entrega, conseguiriam que os Eclipse os devolvessem no prazo de algumas semanas. Quem marcava o dia da troca eram os Eclipse, e nunca houve mais de um mês de distância entre uma troca e outra. Rupert estimava que com apenas oito sacolas de suprimento eles entrariam em contato novamente por volta de duas semanas. Malcolm e Lucas conversaram entre si e decidiram pedir para se juntarem ao grupo de pilhagem. Já era algo com o qual estavam acostumados e, se dessem tudo de si, talvez conseguissem mais comida para o grupo. Planejaram conversar com Lisa e pedir para que ela se juntasse ao grupo de plantio. Mas decidiram ter a tal conversa depois. Lisa queria ficar sozinha. Ela andou todo o percurso de volta afastada do grupo, mais ainda que Arthur. Rupert se desculpou desajeitadamente pelo rumo que a situação havia tomado, mas Malcolm e Lucas sabiam que não havia sido culpa dele.
           Quando chegaram já era noite. Rupert e Arthur se dirigiram ao prédio principal para reportar sobre o acontecido. Malcolm, Lucas e Lisa foram para a casa 255 da rua onze, seu novo lar. Lá dentro encontraram sacolas plásticas endereçadas individualmente, continham roupas novas. Na mesa da sala, cinco quentinhas em pratos de alumínio, acompanhadas de talheres, os esperavam. Nenhum dos três estava com fome, não depois de tudo aquilo. Lisa se encolheu em um sofá e Lucas foi junto para tentar confortá-la na medida do possível. Malcolm aproveitou a deixa para tomar seu banho. Enquanto a água caía em seu rosto ele pensava em como poderia ter contornado aquela situação, se Rupert tivesse explicado com mais sinceridade a situação na qual eles se encontravam, talvez pudessem ter sido mais cautelosos em relação a ficarem tão expostos. Agora era tarde demais, tudo o que podiam fazer era jogar pelas regras e torcer para que não maltratassem muito os gêmeos. Malcolm saiu do banho com suas roupas novas e viu que Lisa havia adormecido no colo de Lucas. Ele se sentou em uma poltrona na sala e encarou sua quentinha. Quando Mégara disse que elas seriam entregues regularmente em suas casas ele mal pode esperar pelo momento, mas agora, mesmo com ela ao alcance de sua mão, ele não tinha interesse. Mesmo assim a pegou, sabia que teria de manter sua saúde. Não podia deixar que nada prejudicasse sua capacidade de querer viver. Ele deu uma das quentinhas na mão de Lucas, que captando o olhar preocupado do amigo, aceitou. Malcolm se levantou e procurou a cozinha, em busca de alguma bebida. Foi interrompido antes de concluir sua busca por uma calma batida na porta da frente. Lisa acordou com o barulho e Lucas atendeu a porta. Malcolm adentrou a sala enquanto Lucas pedia para que seu visitante entrasse. Era Arthur, o recrutador mudo que os havia acompanhado durante aquele dia. Os três estranharam a visita, foi deveras inesperada.
- Preciso falar com vocês três e precisa ser agora. - Disse Arthur, revelando sua grossa voz.
- Claro. Por favor sente-se. - Malcolm o levou ao sofá.
- Eu poderia te oferecer algo, mas a verdade é que eu ainda nem sei onde fica a cozinha, ou o que temos nela. - Lucas disse.
- Não tem problema. Pretendo ser breve. - Falou Arthur. - Eu venho aqui na intenção de recrutá-los.
- Desculpe, mas, já somos integrantes dos Formigas. - Disse Malcolm. - Fomos recrutados nessa tarde.
- Não venho recrutá-los em nome dos Formigas. Venho em nome dos Sombra.