sexta-feira, 24 de abril de 2015

Lótus - Capítulo 9

           No final todos voltaram ao esconderijo dos Sombra, inclusive Christina, que agora havia finalmente terminado sua longa missão.
           Os primeiros a chegarem foram Lucas, Lisa, Mark e Christina. A mulher mais velha tomou logo as rédeas da situação. Ela pediu para que Lucas deixasse a arma que Arthur o havia dado no que ela chamou de "centro de operações", Lucas presumiu que estivesse falando do porão secreto. Ela também conseguiu separar Lisa de Mark, o que havia se mostrado uma tarefa hercúlea, mas no fim ela conseguiu fazê-la aceitar que seu irmão precisava de cuidados médicos, os quais Christina providenciaria, e uma boa dose de descanso. Ela o levou para um dos quartos menores do segundo andar e Lisa, não conseguindo manter muita distância, se apossou do quarto ao lado.
           Lucas foi até a cozinha, na intenção de devolver a pistola de Arthur, mas se pegou parado na frente da geladeira sem saber ao certo a ordem em que os imãs deveriam ser pressionados, lamentou por não ter prestado melhor atenção. Sem ter o que fazer, não hesitou em tomar um banho. O cheiro do sangue seco que empesteava suas roupas e pele o estava matando. Era uma dádiva que eles não tinham contas para pagar, pois Lucas ficou por mais de uma hora debaixo do chuveiro. Enquanto a água caia em seu rosto erguido, levando consigo o líquido vermelho que escorria das madeixas de seus cachos dourados, ele sentia calafrios. De olhos fechados ele repetia aquela cena diversas vezes. Quando ele havia se tornado aquilo? Raiva, medo, tensão, eram tantos os sentimentos que tomavam conta de sua mente naquela hora, mas mesmo assim, ele sentia que nenhum desses o havia influenciado a agir daquela maneira. Quando os três homens vieram em sua direção, ele só pensava em uma coisa "Preciso afastá-los de Lisa.", mas depois de encurralado sua mente desligou. Seu corpo foi tomado inteiramente por instinto, por vontade de sobreviver. Não havia sido a primeira vez, mas havia sido a mais brutal, a mais animalesca, a mais fatal. Russel havia pago por seu frenesi? Teria sido ele o responsável pela morte do garoto? Lucas queria se culpar. Uma pessoa normal o faria, mas ele sabia que o que sua reação tinha sido a única maneira de sair com vida de lá.
           Alguém bateu na porta do banheiro, fazendo Lucas voltar a si. Era Malcolm. Ele pediu para conversar com Lucas quando ele terminasse o banho. Lucas percebeu em seu tom de voz que ele já sabia. Será que o culparia? Não. Lucas sabia que não. Ele talvez fosse a única pessoa capaz de entendê-lo completamente.
           Depois de vestir de volta suas roupas, Lucas encontrou Malcolm esperando por ele sentado no pufe vermelho da sala. Ele levou Lucas até um quarto do terceiro andar, onde esperava poder conversar sem que fossem interrompidos.
- Arthur nos encontrou enquanto esperávamos por vocês. - Malcolm disse, puxando Lucas pelo braço para sentar-se ao seu lado na cama de casal. - Christina havia confirmado o sucesso da missão, mas disse também que o comandante dos Eclipse não havia sido a única fatalidade, que haviam mais corpos no chão daquela sala, mais quatro, dentre eles uma criança.
           Malcolm esperou um pouco, na esperança que Lucas dissesse algo, mas ele permaneceu calado, evitando contato visual.
- Olha cara. Eu só quero te dizer que independente do que tenha acontecido, eu estou aqui por você. - Malcolm colocou sua mão sobre o ombro de Lucas. - Você precisa desabafar, está escrito na sua testa. Agora pode ser a melhor hora para isso e você sabe que eu sou, definitivamente, a melhor pessoa para isso.
           Lucas suspirou algumas vezes, como se quisesse começar, mas sem saber por onde. Malcolm aguardava pacientemente.
- Foi horrível. - Lucas começou em uma voz seca. - O Russel está morto.
           Malcolm engoliu seco.
- Como, exatamente, aconteceu?
- Lisa e eu subimos até a porta do quarto do comandante. Ela ficou com a arma. Disse que fazia questão em dar o tiro. - Lucas cobriu seus olhos. - Eu devia ter pego a arma dela Malcolm, eu sabia que ela não ia conseguir, mas eu não o fiz. Ela hesitou em abrir a porta e com isso eu tive tempo para pensar se estava fazendo a coisa certa em deixá-la atirar. No fundo eu sabia que não, mas eram os irmãos dela que estavam sofrendo. Eu conseguia entender a necessidade que ela sentia de fazê-lo.
           Lucas se levantou enquanto falava e começara a andar em círculos pelo quarto.
- Malcolm, quando ela abriu a porta eu pude vê-lo. O comandante estava entretido demais com sua refeição enquanto seus três comparsas machucavam os garotos. Por quatro segundos ele foi um alvo fácil. Quatro segundos Malcolm. - Lucas falava, em tom de voz crescente. - Tempo mais do que o suficiente para matá-lo e acabar com tudo aquilo.
- E o que teria acontecido aos meninos se você matasse o comandante de súbito? - Malcolm o interrompeu. - Digo, os três comparsas os quais citou poderiam ter feito algo com eles, não acha?
- Eu não sei Malcolm. - Lucas caiu deitado na cama. - Eu simplesmente não sei.
- Como os três comparsas morreram?
- Eu os matei.
- Você os matou? - Malcolm perguntou. - A arma não estava com Lisa?
- Estava. Quando entramos no quarto ela congelou, não conseguiu atirar. - Ele continuou. - Depois, ver o estado em que os irmãos se encontravam foi demais para ela. Parece que o cérebro dela desligou. Ficou ajoelhada no chão, sem reagir. O comandante mandou os capangas pra cima da gente, enquanto mantinha Russel como refém.
- E você os matou? - Malcolm parecia incrédulo. - Desculpe, continue.
- Então os matei. - Lucas contou. - Cara, foi muito estranho. Desde que entramos naquele prédio a adrenalina no meu corpo estava rodando a mil. E, eu sei que vai parecer ridículo, mas quando aqueles três vieram pra cima de mim eu vi o tempo correr mais lentamente, eu não sabia o que fazer até a hora em que o fazia. Não era como se meu corpo estivesse se mexendo sozinho, era só que... Não sei ao certo explicar. Talvez como se meu cérebro estivesse me enviando comandos ridiculamente precisos conforme a necessidade para tais surgia.
- No que você estava pensando, enquanto o fazia?
- Em viver. – Confessou, encontrando o olhar de Malcolm.
           Ambos se calaram por um momento. Malcolm sabia que Lucas se interessava por Lisa. Ele já havia visto seu comportamento mudar outras vezes, com outras garotas. Isso nunca o incomodou, ele sabia que como humano Lucas estava sujeito a isso. Ele realmente esperava que Lucas pudesse fazer alguma besteira para ajudar Lisa. Enquanto Lucas contava a história, Malcolm já havia chegado à conclusão de que ele o tinha feito por ela. Mas não. Não era novidade para Malcolm esse "lado negro" que Lucas tinha. Apesar de ser uma pessoa incrivelmente dócil e leal, Lucas tendia a ter acessos de raiva e explodir de vez em quando. Malcolm aprendeu a lidar com isso, mas começou a se preocupar quando Lucas matou pela primeira vez. Ele entendia que havia sido por autodefesa, mas não podia negar o fato de que percebeu Lucas sentir certo prazer naquilo. Malcolm o moldou psicologicamente como pode. Restringindo-o de matar apenas quando não houvesse outra alternativa, era o que ele mesmo fazia. Naquela situação não havia sido diferente.
- O comandante dos Eclipse surtou. Ele queria matar Lisa e os garotos pra compensar os capangas que eu havia derrubado. Russel foi o primeiro. Mark gritou enquanto o corpo de seu irmão caía, então o comandante apontou a arma para ele. Lisa pôs uma bala entre os olhos do homem antes que o mesmo pudesse atirar uma segunda vez. - Lucas concluiu.
- Entendo. - Malcolm se deitou ao lado de Lucas. - Eu não me culparia se fosse você. Pode não parecer, mas talvez essa tenha sido a melhor das conclusões. Se Lisa tivesse derrubado o comandante quando entrou na sala, os outros três provavelmente teriam usado Russel como refém assim como seu chefe o fizera, ou talvez eles pudessem ter feito algo pior.
- Isso é verdade, mas ainda assim, foi difícil ter que passar por aquilo. Eu sinceramente não consigo imaginar o caos que deve estar tomando conta da mente de Lisa. Ela provavelmente vai me culpar pelo que aconteceu. Isso se ela se lembrar. - Lucas ponderou. - Foi como se sua alma tivesse deixado seu corpo pra trás de uma vez só e então voltado aos pouquinhos. Não sei como lidar com ela.
- Ela vai precisar de um bom repouso. E um bom terapeuta. Seu psicológico acabou de ser destruído.
- Por falar em psicológico destruído, o que aconteceu com você e aquele maluco do Derius depois que fugiram de lá?
- Nós ficamos escondidos, conversando. - Malcolm disse. - Vou te contar uma coisa. Aquele cara tem sérios problemas. Apesar disso ele parece ser uma pessoa boa.
- Sobre o que conversaram?
- Sobre o passado. Ele me contou que Dinky foi o único sobrevivente de todos os seus cães. Eram seis, originalmente, não me lembro dos nomes e raças. Acho que tinha um dálmata.
- Imagino o tipo de coisas que ele te contou.
- Foi uma conversa saudável, na medida do possível. Melhor do que eu esperava. - Admitiu Malcolm. - Ele contou que era um adestrador profissional antes de tudo começar, que seus cães eram a família que ele nunca teve, que fazia o que amava, e como perder seus cães o destruiu. Ele contou tudo com um sorriso no rosto, mas a tristeza com a qual ele contava sua história era palpável de tão intensa.
- Nossa, quem diria... - Disse Lucas se levantando. - Então no fim das contas ele é um pouco são.
- Um pouco perigoso também. Depois que os membros dos Eclipse saíram do covil feito formigas, Derius saiu do esconderijo e se misturou na bagunça, pude vê-lo eliminando uns seis ou sete membros, torcendo seus pescoços. Ele parecia um lobo, batia os olhos em sua presa, focava e rapidamente o abatia.
- Me lembre de não irritá-lo. - Lucas disse, espantado. - O que fazemos agora?
- Não sei. Derius e Arthur chegaram comigo e foram direto pra cozinha, acho que para o porão. Arthur só me disse que eu poderia te procurar, se eu quisesse.
           A barriga de Lucas roncou e eles se entreolharam.
- Acho que descobrimos o que fazer agora. - Malcolm sorriu.
           Os dois foram descendo as escadas. Quando chegaram ao segundo andar, se encontraram com Christina. Ela segurava em sua mão um kit de primeiros socorros e estava fechando, cuidadosamente, a porta do quarto de Mark.
- Christina. - Lucas chamou.
           Ela colocou seu indicador sobre os lábios, pedindo silêncio.
- Falem baixo. - Ela cochichou ao se aproximar. - Mark foi medicado e acabou de pegar no sono.
- Como ele está? - Perguntou Malcolm.
- Se está perguntando sobre sua saúde física, não há nada do qual eu não possa tratar, ele tinha alguns ferimentos leves, uns hematomas e alguns cortes rasos. Agora, sobre sua saúde mental...
           Christina inspirou fundo, como com pena e então segurou Lucas no comprimento do braço.
- Fico feliz que ao menos um de vocês tenha sido forte o suficiente para passar por aquilo. - Ela disse.
           Aquela frase havia feito Lucas lembrar-se de Lisa. De onde estava conseguia ver, por cima do ombro de Christina, a porta do quarto onde ela havia se alojado, a porta estava aberta. Christina deixou os garotos parados ali e desceu as escadas. Malcolm percebeu a preocupação de Lucas.
- Você quer ir falar com ela?
- Não sei se devo. - Lucas respondeu. - Tenho medo da reação dela.
- Se quer minha opinião, acho que quanto antes descobrirmos o que ela pensa, melhor. - Malcolm disse. - Assim vamos poder lidar com a situação.
           Lucas manteve contato visual com a porta do quarto de Lisa enquanto mordia seu lábio inferior.
- Eu espero aqui fora. - Disse Malcolm, empurrando levemente Lucas pelas costas.
           Ele aproveitou o impulso de Malcolm e marchou em direção ao quarto, era a hora da verdade. Quando chegou à porta, Lucas a procurou pelo quarto. Não a encontrou. Ele voltou até Malcolm.
- Ela não está no quarto, deve ter ido lá em baixo.
           Malcolm esbugalhou seus olhos de imediato. Lucas, não compreendendo sua reação, indagou.
- Qual é a razão desse espanto?
           Malcolm não respondeu. Ao invés disso ele rapidamente e silenciosamente abriu a porta do quarto onde Mark estava. Olhou dentro dele e fechou novamente a porta.
- O que houve cara? Você ficou estranho do nada. - Disse Lucas, um pouco desconfortável.
- Lisa acabou de passar por uma situação bem traumatizante, e suas reações não foram as de uma pessoa psicologicamente forte o suficiente para lidar com as mesmas.
- Eu concordo com você, mas onde quer chegar?
- Há uma enorme possibilidade de ela não estar lá embaixo. E sim lá em cima.
           Lucas demorou três segundos para compreender a linha de pensamento de Malcolm. Ele correu escada à cima, seguido de Malcolm. Passaram pelo terceiro andar e se detiveram ao chegar no terraço. A primeira imagem que viram foi das costas de Lisa, do outro lado do parapeito, ainda se segurando no mesmo, um passo de distância de uma queda de aproximadamente dez metros.
- Lisa! - Lucas gritou.
           A garota se assustou e no reflexo de se virar, escorregou. Lucas chegou produzir um grito abafado de espanto, mas em um segundo ela se segurou firme no parapeito e manteve o equilíbrio. Olhando então para Lucas, ela disse em tom imperativo para que ele não se aproximasse. Lucas, ignorando seu pedido, fez menção de se aproximar, mas Malcolm o segurou pelo braço.
- Estamos em uma situação muito frágil aqui. - Sussurrou, dando ênfase no "muito". - Primeiro vamos conversar, depois nos aproximar. Ela precisa estar tranquila, caso contrário ela se jogará.
- Tudo bem. Obrigado. - Disse Lucas, sem tirar os olhos de Lisa. - Lisa, por favor, vamos conversar. - Falou então para ela.
- Não tenho mais o que conversar. - Ela dizia em tom de lamúria. - Eu não aguento mais viver nesse inferno.
- Fique calma. Por favor. - Pediu Lucas. - Converse comigo. Não faça nada precipitado.
           Lisa se manteve calada olhando para Lucas. Seus olhos continham um pedido por ajuda, mas o resto de seu corpo estava motivado a soltar suas mãos da grade de ferro que separavam sua vida de sua morte.
           Malcolm soltou calmamente o braço de Lucas.
- Não faça nada idiota. Eu já volto. - Ele disse.
           Lucas olhou para trás e viu seu amigo descendo rapidamente as escadas. Se virou novamente para Lisa.
- Por que você está fazendo isso Lisa?
- Por quê? Meu irmão está morto! - Ela gritou do fundo dos pulmões. - E ele está morto por minha causa.
- Isso não é verdade. Quem o matou foi o comandante dos Eclipse, e ele já se foi. Volta pra cá Lisa, não faz isso. - Lucas implorou.
- Não. Eu tinha a arma. Eu podia ter matado aquele maldito antes que ele pudesse atirar no meu irmão. Russel morreu por que eu fui fraca. Ele morreu por que eu fui incapaz de salvá-lo, logo eu, que dizia estar disposta a tudo por ele.
- Lisa, você não foi fraca. O fato de você não ter sido capaz de atirar só mostra o quão forte você é. Mesmo em momentos como aquele você não foi capaz de abandonar sua humanidade, não foi capaz de matar.
- Não fui capaz? - Ela chorou. - Eu atirei nele. Bem no meio dos olhos, caso não se lembre. Eu só precisava tê-lo feito antes e Russel ainda estaria vivo.
- Se você tivesse atirado antes teria sido muito pior. - Disse agora uma terceira voz.
           Lucas se virou para ver Malcolm colocando Mark no chão. O garoto estava muito fraco, seus olhos vermelhos e inchados como os da irmã. Tinha curativos espalhados por todo o corpo, e sua feição estava séria como Lucas nunca tinha visto.
- O comandante era a única coisa que impedia aqueles capangas de nos matar. - Mark continuou, enquanto muito lentamente andava na direção de sua irmã. - Provavelmente teriam matado a todos nós.
- Mark. - Lisa engoliu em seco. E se segurou mais firme no parapeito. - Não venha mais perto.
- Ou você vai se jogar? - Disse o garoto em tom irônico. - Você, que sempre fez questão de nos proteger, vai me abandonar desse jeito?
- Você não entende Mark, eu sou fraca. De que adianta eu viver se não sou capaz nem de dar minha vida por aqueles os quais quero proteger?
- Não vou te contrariar, você é realmente fraca. O fato de estar desistindo é a prova disso. Sabe qual é o seu problema? Você se acha responsável por tudo que acontece com a gente.
- Mas eu sou. Sou sua irmã mais velha. - Lisa dizia em prantos.
- Você não é responsável. Você nunca foi. Eu e Russel sempre compreendemos esse papel de guarda que você exercia pela gente, não contando sobre a morte de nossos pais...
           Lisa gemeu em resposta.
- O que foi? Você acha que não sabíamos? - Mark cuspia enquanto, exponencialmente, elevava seu tom de voz. - Você realmente acha que éramos tão estúpidos?
- Eu fiz para protegê-los, eu não queria...
- Você fez errado. - Mark a cortou. - Essa ideia deturpada que você cultiva de proteção é o que te faz tomar atitudes idiotas como essa.
- Não diga isso irmão. - Lisa suplicou. - Eu não devia... Eu não devia ter concordado com esse plano. Se... Se ao menos eu tivesse pago o que eles pediram. As sacolas... As vinte sacolas...
- Nós não viveríamos para ver essa troca. Será que você não compreende? - Mark disse com certa repulsa em sua voz. - Eles nos levaram para ter com o que brincar. Eles nos torturaram apenas por prazer. Se vocês não tivessem me salvado, não só Russel, mas eu também não estaria vivo.
- Isso... Eu não... Mark... - Lisa se enrolava com suas palavras, confusa demais para raciocinar qualquer coisa que fosse.
- Russel sempre me protegeu. Mesmo quando éramos menores e os garotos da escola implicavam comigo por eu estar sempre calado, ele sempre estava lá por mim. Ele me deu o suporte que eu precisei quando nossos pais morreram, diferente de você que preferiu evitar o assunto, ele sempre fez tudo por mim. Quando em posse dos Eclipse, ele pedia pra que eu fingisse desmaios assim que as torturas começavam para que eu não apanhasse tanto e eu o fazia, ele apanhava no meu lugar, a minha vergonha por ser um medroso doía muito mais que aqueles cortes e pancadas. Meu irmão era incrível, tudo que eu mais queria era ser como ele, para que um dia eu pudesse retribuir tudo o que ele fez por mim. Mas não pense que ele apenas me amava. Foi ele quem se meteu entre você e os capangas dos Eclipse, ele queria ser levado no seu lugar por que sabia o que te esperava, ela não queria ver você sofrer. E ele morreu o fazendo. Eu não te culpo Lisa, Russel fez suas próprias escolhas e eu sei que em nenhum momento ele se arrependeu delas. O que me enoja é o fato de você estar jogando a determinação dele por água a baixo.
           Um breve silêncio se interpôs entre os dois. Então Mark continuou, em um tom mais brando.
- Eu ainda te amo Lisa, você ainda é minha irmã. Caso um dia você consiga nadar pra fora desse poço de lamúria, eu vou te perdoar por ter fraquejado. Agora, se ainda quiser se jogar daí, não se preocupe nem em chegar ao chão, pois pra mim, estará morta antes mesmo de tocá-lo.
           Mark se virou e, lentamente caminhou de volta. Lisa, que ouviu todo o desabafo de seu irmão sem se mexer, se encontrava pasma. Em toda sua vida nunca havia escutado tanto a voz de Mark em tão pouco tempo. Ela sentia vergonha em seu âmago por estar prestes a se jogar. Agora compreendia o quão ingrata estava sendo para com seu falecido irmão, que tinha feito de sua última palavra um resumo de seu último desejo. "Mark", ele tinha dito. Lisa compreendeu o sentimento de Russel, ele queria que ela protegesse o irmão no seu lugar, não do jeito em que ela os protegia, mas do jeito em que ele o fazia. Mas Russel havia subestimado seu irmão, ele nunca poderia ter imaginado que quem mais precisaria de suporte era na verdade Lisa.
- Me leve de volta pro quarto. - Mark pediu calmamente para Malcolm. - Por favor.
           Malcolm encontrou o olhar de Lucas e o viu boquiaberto. Acenou com a cabeça para o seu amigo e então pegou Mark no colo. Lucas esperou que os dois se retirassem e cautelosamente foi até Lisa. Ele colocou sua mão sobre a dela. Ela estava tremendo. Seu rosto estava virado para baixo e suas lágrimas escorriam sem que ela produzisse um som sequer. Ele a ajudou passar por cima do parapeito e a levou vagarosamente até seu quarto no segundo andar. Malcolm estava lá os esperando, ele mesmo fechou a porta atrás de Lucas quando entraram no quarto de Lisa, preferiu dar aos dois privacidade.
           Malcolm desceu ao primeiro andar, precisava espairecer um pouco, pensar em outra coisa. Aquilo havia sido muito intenso. Ele não conhecia Mark há muito tempo, mas sabia que o garoto havia se tornado mais forte com os acontecimentos, diferente da irmã. Ele procurou por alguém no primeiro andar e encontrou Christina na cozinha, ela preparava uma refeição para o grupo.
- Christina. - Malcolm chamou. - Posso te ajudar com alguma coisa?
- Deve. Qualquer coisa pra mudar seu foco. Aquela cena no terraço foi de tirar o fôlego.
- Você ouviu? Daqui de baixo? - Malcolm perguntou espantado.
- Na verdade eu assisti tudo. - Ela falou enquanto passava uma faca para ele. - Eu, Arthur e Derius estávamos lá em baixo, e temos câmeras pela casa inteira, medidas de segurança. Agora corte aqueles tomates em cubos para mim.
           Malcolm se sentiu um pouco estranho em saber que estaria sendo vigiado vinte e quatro horas por dia, mas como Christina havia dito, ele precisava mudar seu foco. Foi procurar os tais tomates, mas parou no caminho quando Arthur, subitamente, saiu pela geladeira. Ainda não havia se acostumado com aquilo.
- Temos um problema, e dessa vez vamos lidar com ele de uma vez por todas. - Ele disse.
- Ele de novo não. - Christina lamentou.
- Ele quem? Do que estão falando? - Malcolm estava confuso.

- Um inimigo antigo e irritantemente furtivo. - Arthur desabafou. - Nós o chamamos de Caçador.