segunda-feira, 4 de maio de 2015

Lótus - Capítulo 12

       Malcolm estava na sala de estar de sua casa. Seu pai havia acabado de chegar do trabalho e sua mãe foi recebê-lo na porta. Malcolm estava feliz. Foi até seu pai e o abraçou. De pé ele mal passava da cintura de seu pai, mas isso não pareceu estranho pra ele. Sabia que o jantar seria extraordinário, o delicioso espaguete que sua mãe fazia apenas em ocasiões especiais, e hoje estariam comemorando mais um ano de vida de seu amado pai. Era a noite de uma sexta-feira e no dia seguinte acordariam cedo para viajar e passar o final de semana em um resort a beira mar. Foi quando sentaram à mesa que a parte estranha começou. As luzes se apagaram e seus pais olharam pra ele, "Está tudo bem com você filho?", perguntaram em uníssono. Malcolm não conseguia falar, sua voz fora roubada de si pela imagem tenebrosa que agora testemunhava. O rosto de seus pais começara a secar, a cor sumia aos poucos e logo suas peles escamavam e se desfaziam. Como cinzas de uma folha de papel queimada, suas peles e músculos voaram junto a uma brisa anormal que soprara pela mesa, deixando o rosto de seus pais em osso puro, "Você está solitário Malcolm." disseram, e então Malcolm estava nu. Flutuando na escuridão. Ele não conseguia se mover, mas conseguia falar. Gritou o nome de seus pais mas não houve resposta. Ele chorou. Estava realmente solitário. Imagens passaram em sua mente, imagens de quando havia ido morar com Lucas e assim começara a construir sua independência. Ele evoluíra, e sabia que Lucas havia sido o estopim disso. Foi na necessidade de ser alguém responsável pelos dois que Malcolm havia chegado onde estava. "Lucas.", ele chamou, e, vindo do vazio, ouviu novamente a voz de seus pais que ressoava no vácuo, "Isso filho. Você está solitário, mas não desista, pois nunca estará sozinho.".
           Ele abriu seus olhos vagarosamente, tudo estava rodando a sua volta. Ele não soube onde se encontrava e por algum tempo encarou o teto cinza e manchado. Minutos se passaram enquanto ele admirava os pontos de poeira que dançavam no feixe de luz solar proveniente da única janela do aposento, era gradeada com barras de ferro como as de uma cela de cadeia. Quando fechava os olhos pensava no sonho que tivera. Ele agora era forte. E construía a cada segundo que passava mais determinação. Determinação o suficiente não só para si, mas para aqueles que queriam viver, como Lucas, como Derius, Lisa e Mark.
           Quando suas forças retornaram ao seu corpo ele se sentou. Olhou em volta e viu que estava em uma cela penitenciária. Estava sentado numa cama encimada por um colchão, se é que podia ser chamado de colchão, estava mais para grande pedaço de espuma mofado, carcomido e poeirento no qual Malcolm não teria coragem de dormir novamente. Se levantou com um pouco de nojo. Do outro lado daquele quarto cinza havia um vaso sanitário em condições deploráveis. E só. Não sabia por quanto tempo havia dormido, mas pela dor que ainda sentia na região da têmpora, estimava que não mais de cinco horas. Ele não estava morto, o que o surpreendeu um pouco. Pelo que Arthur contara a respeito do Caçador não imaginava que o homem usasse reféns. Mas ali estava ele.

           Malcolm ficou de pé e caminhou, ainda um pouco cambaleante, até a porta da cela que ficava em uma parede de barras de ferro verticais espaçadas. Tentou espiar de todos os ângulos o que havia do outro lado, mas não importando de onde olhava, tudo que via era a parede do corredor que continuava para ambos os lados até onde seus olhos já não alcançavam. Arrastou a cama até a parte de baixo da janela para tentar alcançar o peitoril. Sem sucesso. Era alto demais. Talvez se pulasse pudesse se agarrar as barras de ferro e se içar para ao menos ver o que tinha do outro lado, mas seria arriscado, a cama já não estava lá muito inteira. Desistiu.
           Ele queria sair dali. Queria saber se Derius estava bem. O Caçador o havia mantido vivo, mas e se ele só precisasse de um refém? Teria Derius sido vítima desse desafortunado destino? Malcolm não tinha como saber. Só lhe restava esperar.
           O tempo foi passando. Malcolm estava sentado no chão, encostado na parede, abraçando suas pernas, enquanto tentava inutilmente controlar os roncos de seu estômago.
- Finalmente acordou. - Disse a voz do lado de fora da cela em tom zombeteiro.
           Malcolm levantou sua cabeça de súbito, o que fez sua têmpora fisgar. Era o Caçador que falava com ele. Trazia consigo uma garrafa grande de água e algumas frutas em uma cesta. Ele abriu a porta da cela com uma chave de metal e adentrou a cela. Foi se aproximando calmamente de Malcolm, deixando a porta aberta atrás de si. Malcolm percebeu o desleixo do homem e o homem percebeu que Malcolm percebera.
- Isso mesmo garoto, a porta está aberta. - Falou enquanto um sorriso se formava em seu rosto. - Vai tentar fugir? Espero que se garanta em passar por mim.
           Ele estava certo e Malcolm aceitara isso. A centelha de esperança de fugir por aquela porta se apagava conforme o brutamontes se aproximava dele. O Caçador era uma montanha de músculos muito amedrontadora. Malcolm enterrou novamente a cabeça em seu colo, não queria olhar para seu raptor.
- Trouxe essas frutas para você, deve estar com fome.
           Malcolm se recusava a responder. Ele estava com raiva. Seu plano fracassara, e, embora ele soubesse que não tinha sido sua culpa, se culpava mesmo assim. Agora estava em uma péssima situação e não sabia como poderia escapar dela.
- Garoto, eu sei que deve estar nervoso e que deve ter mil perguntas pra fazer, mas...
- Só uma. - Ripostou entredentes.
- Desculpe garoto, não entendi o que disse. - O Caçador respondeu calmamente, se agachando de uma distância segura de Malcolm e deslizando a cesta e a água até ele.
- Eu disse que só tenho uma pergunta.
- Sou todo ouvidos.
- Derius. - Malcolm disse, levantando sua voz. - O homem que estava comigo. O que fez com ele?
           O Caçador encarou Malcolm nos olhos, o estudou calmamente.
- Ele está bem. - Respondeu enfim. - Não o machuquei. Não além daquele soco, quero dizer. Ainda está desmaiado mas não corre riscos. Tenho ele preso em outra sala, tão segura quanto essa.
           Os instintos de Malcolm diziam que ele não deveria acreditar no homem, mas ao mesmo tempo ele soava sincero. De qualquer forma, ouvir que Derius estava bem o acalmara por ora.
- Bom, ao contrário de você, tenho mais de uma pergunta a fazer. - O Caçador se levantou e se retirou da cela, trancando a porta atrás de si. - Tente dormir. Eu sei que a cama não é agradável, mas é o que temos por aqui. Amanhã nós conversaremos a respeito de algumas coisas, como o porquê de Arthur ter te enviado atrás de mim.
           Dito isso ele se foi. Malcolm tardou a perceber que o Caçador mencionara o nome de Arthur. Seu coração bateu mais rápido quando o fez. O Caçador sabia, pela armadilha que foi claramente montada por encomenda para si, que eles haviam sido enviados por Arthur. Talvez fosse seguro deduzir que Arthur era seu único inimigo ou talvez o único que ousava ir atrás dele. Mas isso era de se esperar, afinal de contas o Caçador havia feito coisas horríveis contra os amigos de Arthur, segundo ele.
           Malcolm não havia movido um músculo desde que o Caçador deixara a cela. Sua mente trabalhava a mil pensando nos possíveis tópicos a serem abordados na conversa que teria com ele no dia seguinte. Sua linha de pensamento foi interrompida quando, mais uma vez, seu estômago reclamou. Ele olhou ceticamente para o cesto de frutas junto ao seu pé. Havia algumas maçãs, poucas peras e um cacho de uvas roxas, todas frescas. Era o suficiente para ele. Se alimentou e se hidratou. Olhou para o pseudo colchão que tinha a sua disposição e, sem coragem de usá-lo, deitou-se ali mesmo no chão onde estava. Ainda era o final da manhã e Malcolm não tinha sono. Rolou irrequieto pelo chão duro e frio até que enfim adormeceu. Foi um sono sem sonhos dessa vez. Ele acordou. O sol ainda podia ser visto pela janela, mas não sabia se ele estava subindo ou descendo. Muitos músculos de seu corpo doíam por ter dormido no chão duro. O pseudo colchão bolorento parecia o namorar de longe. Malcolm enfim cedeu a seus desagradáveis encantos e se deitou na cama. No início evitou se mexer mais do que o necessário, tal era o asco, mas conforme o tempo foi passando seus músculos doloridos o agradeceram e ele ficou mais a vontade. Logo adormeceu novamente.
           Malcolm sentiu seu ombro ser balançado e abriu seus olhos. O Caçador estava o acordando suavemente. Ele se levantou da cama sentindo certo desconforto pelo grande homem estar ao seu lado.
- Nós vamos conversar agora. - Disse o homem. - Use a privada pra fazer suas necessidades e depois me encontre no final do corredor.
           Dito isso o Caçador deixou a cela de Malcolm e largou a porta aberta atrás de si. Malcolm não perdera tempo, ele tinha uma chance de escapar. Olhou pela porta e viu o Caçador se afastando pelo corredor. A chama de esperança dele logo se apagou quando olhou para o outro lado do corredor e viu que dava em uma parede, sem saída. O Caçador estaria no meio do único caminho que Malcolm poderia tomar ao sair da cela. Agora mais desperto para a realidade de sua situação, resolveu jogar pelas regras do Caçador e ver onde tudo aquilo iria terminar.
           Esvaziou sua bexiga e foi de encontro ao Caçador. Pelo caminho passou por mais duas celas que se encontravam ao lado da dele. Ambas estavam vazias. Alcançou seu carcereiro e o homem o segurou pelo ombro. "Venha comigo.", ele disse, mas não era como se estivesse dando uma escolha a Malcolm. Ele o guiou pelas salas do local e o contou que estavam em uma delegacia na cidade. Pararam frente uma porta cinza de metal polido com uma pequena janela de vidro retangular no centro que permitia uma pessoa de fora enxergar o que se passava lá dentro. O Caçador segurou a maçaneta e se dirigiu a Malcolm.
- Antes de abrir a porta, queria logo te dizer que seu amigo está aí dentro.
           Malcolm manteve a calma sem demonstrar a ansiosidade que sentia. Estaria Derius realmente bem?
- Ele está algemado a mesa. - Continuou. - Diferente de você, ele está bastante agressivo e indisposto a cooperar, portanto tive que tomar essas medidas. Essa é uma sala que eles usavam para interrogar os presos, achei que não haveria lugar melhor para conversarmos.
           Malcolm assentiu com a cabeça, mas não respondeu. O Caçador o continuou fitando.
- Não vai me perguntar por que te contei isso antes de abrir a porta?
           Ele olhou nos olhos do Caçador. Aquele homem o estava subestimando, e embora pudesse usar isso ao seu favor, Malcolm detestava ser subestimado, e já continha raiva demais acumulada dentro de si.
- Está me contando isso por que quer que eu o acalme. - Explicou, sem vacilar o olhar. - Derius é insanamente leal ao Arthur, então, se você pronunciou esse nome pra ele como o fez para mim presumo que o tenha enraivecido, logo, assim que entrarmos na sala, ele vai gritar e xingar, o que prejudicaria nossa conversação. Está me dizendo isso aqui do lado de fora por que me pedir para acalmá-lo na frente dele só o deixaria mais nervoso.
- Garoto, você é bom. - O Caçador disse em tom de aprovação enquanto girava a maçaneta.
           O Caçador entrou na frente, e como suspeitara, Derius começou a gritar. Exigia ser libertado ou morto e dizia que nunca revelaria informação que fosse a respeito de Arthur para um assassino como o Caçador. Foi quando Malcolm entrou que Derius se calou por alguns segundos, perplexo. Ele estava, agora de pé, mas ainda algemado pelos dois pulsos a um cano de ferro preso na face da mesa. Seu liso cabelo estava solto e desgrenhado, parecia que havia saído de uma briga contra uma gataria. Malcolm foi até ele enquanto o Caçador trancava a porta.
- Que bom que você está bem. - Disse Malcolm apertando o ombro de Derius.
- Eu pensei que ele fosse te matar.
- Bom, pra ser sincero, eu também.
- Podemos conversar agora? - O Caçador os interrompeu.
- Não temos nada o que conversar, seu assassino maldito. - Derius fazia chover perdigotos na direção do Caçador enquanto gritava. - Não vamos te contar nada. Preferimos morrer a trair nossos amigos.
- Não quero que traiam seus amigos. Apenas que me escutem um pouco, calados. - Disse, enfatizando o "calados".
- Eu nunca irei me calar perante alguém como você. - Derius retrucou com desdém.
- Derius. - Malcolm interveio. - Deixe o homem falar. Ficar gritando não nos levará a nada, e ele nos tem em suas mãos, se quisesse ter nos matado já o teria feito. Não precisa ficar pedindo.
           Derius encarou Malcolm com uma carranca mau humorada e depois olhou diretamente para o Caçador como se estivesse prestes a cuspir, dessa vez propositalmente, no homem. Ele, enfim, se calou e se sentou, mantendo apenas as mãos presas acima da mesa.
- Eu sei que Arthur os enviou para me matar. Isso não é novidade pra mim por que não são os primeiros.
           Malcolm franziu o cenho, mas permaneceu calado. Se aquilo fosse realmente verdade, significava que Arthur tinha mais confiança neles do que nos antes enviados. Ou que não se importava com a morte deles. Tinha que ser o primeiro.
- Imagino que ele tenha contado para vocês como assassinei os membros do grupo dele. - Continuou. - Essa é a mentira que ele conta para todos que envia pra tentarem me matar.
           Malcolm apertou o ombro de Derius quando este fez menção de novamente irromper em insultos. Isso o fez se manter calado.
- Não vou negar que matei aqueles três. O fiz. Mas não os torturei ou os deixei sofrer, já não posso dizer o mesmo a respeito deles. Vejam, garotos, eu já fui um dos membros dos Sombra. Quando tudo isso começou, Arthur selecionou cinco pessoas, as mais cruéis, frias e capazes que ele conhecia. Entre os cinco estávamos eu e Christina, presumo que a conheçam.
           Malcolm anuiu.
 "Muito bem. Éramos todos gananciosos. Trabalhávamos como um grupo, mas no fundo todos sabíamos que era si por si, o que nos motivava era o ganho pessoal. Arthur nos liderava por ser o mais diplomático. Sem ele nós acabaríamos nos matando em troca de muito pouco. Certo dia ele nos enviou para pilhar as casas de uma rua enquanto ele e Christina preparavam um esconderijo novo para nós. Estávamos sempre em movimento, assim era mais fácil de despistar qualquer um que estivesse perto de nos descobrir e também, um lugar novo sempre significava casas ainda intocadas ou centros comerciais, cheios de suprimentos. Quando chegamos à rua em questão, nos dividimos para agilizar o serviço. Na segunda casa que invadi, encontrei uma garotinha, não devia ter mais de cinco anos, ela estava escondida dentro de um guarda roupas, estava abraçada com sua boneca de pano e chorava muito. Nossa ordem primaria era eliminar qualquer pessoa que encontrássemos em nosso caminho. Nós éramos como sombras, ninguém deveria notar nossa presença, saber que estávamos ali. Mas eu simplesmente não pude eliminar aquela garota. Uma semana havia se passado desde o começo das mortes. Imagino que ela deveria estar escondida ali desde então, passando fome, sede, e pior, com medo. Eu a acalmei como pude, na época era ainda mais sem jeito com crianças do que sou hoje. A levei em meus braços até a cozinha da casa. Foi um erro. Havia o corpo de uma mulher lá, provavelmente era sua mãe. Ao ver o corpo a garota gritou, o que atraiu a atenção de meus companheiros de grupo que estavam por perto. Eles vieram correndo e viram a garota comigo. Me perguntaram o porquê de ela ainda estar viva, mas não deram tempo para que eu pudesse responder. Um deles se aproximou com um olhar demoníaco e matou a garota a pauladas, sem nem hesitar. Eu fiquei paralisado. Enquanto os outros dois gargalhavam assistindo aquela cena eu pensava se realmente era aquilo que eu estava me propondo ser. Um assassino sem coração. Eu já havia matado sim, sem motivos até, mas nunca teria coragem de fazê-lo com um ser tão puro quanto aquele. Nós voltamos para o nosso esconderijo e eles caçoaram de mim por todo o caminho. Perceberam que eu estava prostrado. Dois dias se passaram e eu não consegui tirar aquela imagem da minha cabeça. Um ser tão benigno sendo massacrado, sem chance alguma de se proteger ou contestar. Eu estava mudando. Decidi deixar o grupo. Contei para Arthur o que houve, em particular, imaginei que ele entenderia minha razão e aceitaria minha renuncia aos Sombra. E ele o fez, ou pelo menos assim o fez parecer. Arthur contou aos outros membros que eu estava deixando-os, o fez da forma mais serena possível, demonstrava certa tristeza, mas ao mesmo tempo falava em um tom compreensivo. Eles se despediram de mim com a tristeza mais ilusória que puderam expressar. Não me enganavam, todos aqueles cobras, mas não me importava. Não os teria mais que ver. Deixei o esconderijo e me tornei um errante, logo no meu segundo dia sozinho deixei minha guarda baixa e mal pude esperar pelo ataque. Meus três ex-colegas de grupo me emboscaram. Não sei como fui tão tolo a ponto de não perceber. Os Sombra não podiam ser notados. Ninguém de fora podia se dar conta de sua existência, mas eu sabia, e agora era alguém de fora. Arthur fez o seu teatro manipulador e eu fui enganado com maestria. Os três não me mataram de imediato. De acordo com a conversa que ouvi enquanto me carregavam, Arthur havia permitido que se divertissem comigo antes de me eliminar. Me levaram à um bar abandonado e me amarraram pelos pés e mãos a uma cadeira de madeira. Eles me bateram até seus punhos doerem. Não sei por quanto tempo isso continuou, visto que desmaiei algumas vezes. Na última vez que acordei estava desamarrado e sendo arrastado pelas pernas por toda extensão da rua, precisavam da força dos três para fazê-lo. Minhas costas estavam sendo raladas pelo chão a cada segundo que se passava, mas não senti desconforto. Já estava imune a dor. Como os três estavam na minha frente não perceberam que eu havia acordado, e como não tinha muita força para escapar daquela situação decidi tirar proveito dela como pude. Permaneci imóvel e de olhos fechados. A cada segundo que passava minhas forças iam voltando e junto a elas meus sentidos. Os escutei discutir o que fariam comigo a seguir, decidiram me enterrar vivo. Continuaram me arrastando até um pequeno parque e me largaram em qualquer lugar na grama úmida. Um deles ficou para me vigiar enquanto os outros dois procuravam pás ou algo com o qual pudessem cavar uma cova funda o suficiente para mim. Mantive meus olhos semicerrados esperando tirar proveito de qualquer deslize na vigia do meu captor. Foi quando ele se afastou um pouco para fumar que agi. Não tinha força o suficiente para fugir, eu sabia disso, teria que matá-lo. Me aproximei sorrateiramente enquanto ele tragava aquele desagradável pirulito de nicotina e num movimento rápido roubei a faca que ele trazia em sua cintura. Quando se virou para ver o que estava acontecendo, a empalei em seu estômago. Vi a perplexidade em seus olhos enquanto os mesmos perdiam seu brilho e minha mão se banhava em sangue quente. Com o resto de suas forças fez menção de gritar, então cobri sua boca com a palma de minha outra mão e, pra mantê-lo parado até morrer, o joguei ao chão. Me coloquei em cima dele, para que não tivesse como escapar, mas não tive todo o tempo que gostaria. Ouvi os outros dois gritarem ao se aproximarem e compreenderem a cena. Me levantei e trouxe comigo a faca carmesim, agora pronto para combater os outros dois. Precisava matá-los. Minha vida dependia disso. E, de certa forma, estava me sentindo bem em fazê-lo, afinal de contas eu sabia que tipo de pessoa eles eram. Se os deixasse viver, outras boas e inocentes pessoas poderiam vir a perecer. Foi uma dança desajeitada, um deles também tinha uma faca e o outro um porrete de madeira maciça. Eles me golpearam e cortaram, mas a dor já me era familiar demais, quase não a notava. Emergi vitorioso e isso me fez pensar que talvez pudesse me redimir de meus pecados. Matando aqueles três eu estava certo de que havia salvo muitas vidas inocentes a longo prazo, mas ainda não era o suficiente, eu podia fazer mais. Desde então eu pilho as casas da cidade em busca de recursos que uso para alimentar pessoas boas que encontrei por aí. De vez em quando algum súdito de Arthur aparece para tentar me matar. Faço o possível para tentar fazê-los enxergar o verdadeiro vilão da história, o que nunca deu certo. Arthur sempre consegue manipular pessoas para que me vejam como o grande vilão da história, ele é uma pessoa extremamente perigosa. Mas não posso desistir. É por isso que ainda estão vivos. Planejo libertar vocês, mas antes queria que soubessem da verdade. Só não tentem voltar para terminar o trabalho pois caso o façam terão o mesmo destino dos outros que tentaram. ".
           Malcolm viu a carranca no rosto de Derius se desfazer aos poucos conforme a história se desenrolava. Ele não achava que Derius acreditaria naquela versão, nem ele mesmo sabia se acreditava ou não. Era realmente convincente e bem detalhada.
- Não me procurem mais. Não quero o mau para vocês. E, caso ainda planejem voltar para Arthur, mantenham seus olhos abertos e vocês serão capazes de enxergar a verdade. Digam a ele que não planejo atacá-lo. Sei que não estou apto a isso, ele é muito mais habilidoso que eu. Meu suicídio não traria bem algum a ninguém. Mas se um dia eu o pegar em desvantagem, ele perecerá por minhas mãos, para o bem desse mundo.
           Era informação demais a se processar. Malcolm estava incerto de tudo. Se Arthur realmente fosse uma pessoa ruim, talvez Mark, Lisa e Lucas estivessem em perigo, se não, essa semente da discórdia que havia sido plantada na mente de Malcolm poderia atrapalhar o convívio de todos.
           Sem mais delongas, o Caçador soltou as algemas de Derius. Para a surpresa de todos, ele não avançou no homem, apenas massageou seus pulsos por um momento. Malcolm queria um tempo a sós para conversar com ele a respeito do que o Caçador os havia contado e, aparentemente, o teria. O Caçador os chamou e os conduziu até a saída da delegacia. Antes de liberar a porta ele os deu uma sacola plástica com frutas frescas e água. Os informou a respeito de como voltar à rua Marechal Gerard. Não estava muito longe, talvez uma hora de caminhada os levaria de volta. Malcolm agradeceu pelos mantimentos, não sabia ao certo se devia, mas ser educado nunca se mostrara contra produtivo. Queria perguntar a respeito da arma que tivera consigo quando foi raptado, mas duvidava que o Caçador a devolveria. Antes mesmo de começarem sua caminhada, Malcolm ouviu um ladrar ao longe. Derius, que até então mantinha uma postura abatida, se alertou de imediato.
- Dinky! - Sussurrou para ninguém em especial.
           Derius assobiou longa e agudamente. Logo que o fez, os latidos se tornaram mais altos, até que, virando uma esquina, Malcolm pode ver o cão vir correndo de encontro ao seu dono. O que o alarmou foi o garoto que seguia o cão. Derius não pareceu dar a mínima. Assim que Dinky o alcançou ele se agachou e deixou que o cão lambesse todo seu rosto. O Caçador assistia a cena, curioso, a alguns metros de distância. Conforme a criança se aproximava Malcolm pode reconhecer algumas características. Era Mark, e ele parecia bem abatido e desesperado.
- Mark?! - Malcolm gritou enquanto o garoto se aproximava numa corrida cambaleante. - O que está fazendo aqui?
- Dê uma das garrafas de água para ele. - Sugeriu o Caçador, se aproximando. - Ele não me parece muito bem.
           Malcolm acatou a sugestão e ofereceu uma garrafa ao garoto assim que ele os alcançou. Estava ofegante e não conseguia falar, mas parecia ter mil coisas a dizer. Ele pegou a garrafa d'água e a bebeu em goles demorados. Se recompôs até que finalmente conseguiu falar.
- Ele os matou, Malcolm.
           Derius começou a prestar atenção ao ouvir aquelas palavras. Provavelmente percebera quem era aquele menino. Malcolm não entendera de imediato sobre o que Mark falava.
- Do que está falando, Mark? - Inquiriu.
- Arthur os matou. O maldito esteve mentindo durante todo esse tempo. Ele os usou. Ele não se importa com ninguém que não seja ele.
           O Caçador substituíra seu ar de preocupação pelo de apreensão.
- Vá com calma Mark. - Malcolm pediu. - Me diga com calma o que aconteceu.

- Ele os matou Malcolm. Foi o Arthur. Pouco depois de vocês saírem ele sacou uma arma e atirou nos dois. Primeiro na minha irmã, e depois no Lucas, eu vi, estão os dois mortos.