Malcolm estava na sala de estar de sua casa.
Seu pai havia acabado de chegar do trabalho e sua mãe foi recebê-lo na porta.
Malcolm estava feliz. Foi até seu pai e o abraçou. De pé ele mal passava da cintura
de seu pai, mas isso não pareceu estranho pra ele. Sabia que o jantar seria
extraordinário, o delicioso espaguete que sua mãe fazia apenas em ocasiões
especiais, e hoje estariam comemorando mais um ano de vida de seu amado pai.
Era a noite de uma sexta-feira e no dia seguinte acordariam cedo para viajar e
passar o final de semana em um resort a beira mar. Foi quando sentaram à mesa
que a parte estranha começou. As luzes se apagaram e seus pais olharam pra ele,
"Está tudo bem com você filho?", perguntaram em uníssono. Malcolm não
conseguia falar, sua voz fora roubada de si pela imagem tenebrosa que agora testemunhava.
O rosto de seus pais começara a secar, a cor sumia aos poucos e logo suas peles
escamavam e se desfaziam. Como cinzas de uma folha de papel queimada, suas
peles e músculos voaram junto a uma brisa anormal que soprara pela mesa,
deixando o rosto de seus pais em osso puro, "Você está solitário
Malcolm." disseram, e então Malcolm estava nu. Flutuando na escuridão. Ele
não conseguia se mover, mas conseguia falar. Gritou o nome de seus pais mas não
houve resposta. Ele chorou. Estava realmente solitário. Imagens passaram em sua
mente, imagens de quando havia ido morar com Lucas e assim começara a construir
sua independência. Ele evoluíra, e sabia que Lucas havia sido o estopim disso.
Foi na necessidade de ser alguém responsável pelos dois que Malcolm havia
chegado onde estava. "Lucas.", ele chamou, e, vindo do vazio, ouviu
novamente a voz de seus pais que ressoava no vácuo, "Isso filho. Você está
solitário, mas não desista, pois nunca estará sozinho.".
Ele abriu seus olhos vagarosamente,
tudo estava rodando a sua volta. Ele não soube onde se encontrava e por algum
tempo encarou o teto cinza e manchado. Minutos se passaram enquanto ele
admirava os pontos de poeira que dançavam no feixe de luz solar proveniente da
única janela do aposento, era gradeada com barras de ferro como as de uma cela
de cadeia. Quando fechava os olhos pensava no sonho que tivera. Ele agora era
forte. E construía a cada segundo que passava mais determinação. Determinação o
suficiente não só para si, mas para aqueles que queriam viver, como Lucas, como
Derius, Lisa e Mark.
Quando suas forças retornaram ao seu
corpo ele se sentou. Olhou em volta e viu que estava em uma cela penitenciária.
Estava sentado numa cama encimada por um colchão, se é que podia ser chamado de
colchão, estava mais para grande pedaço de espuma mofado, carcomido e poeirento
no qual Malcolm não teria coragem de dormir novamente. Se levantou com um pouco
de nojo. Do outro lado daquele quarto cinza havia um vaso sanitário em
condições deploráveis. E só. Não sabia por quanto tempo havia dormido, mas pela
dor que ainda sentia na região da têmpora, estimava que não mais de cinco
horas. Ele não estava morto, o que o surpreendeu um pouco. Pelo que Arthur
contara a respeito do Caçador não imaginava que o homem usasse reféns. Mas ali
estava ele.
Malcolm ficou de pé e caminhou, ainda
um pouco cambaleante, até a porta da cela que ficava em uma parede de barras de
ferro verticais espaçadas. Tentou espiar de todos os ângulos o que havia do
outro lado, mas não importando de onde olhava, tudo que via era a parede do
corredor que continuava para ambos os lados até onde seus olhos já não
alcançavam. Arrastou a cama até a parte de baixo da janela para tentar alcançar
o peitoril. Sem sucesso. Era alto demais. Talvez se pulasse pudesse se agarrar
as barras de ferro e se içar para ao menos ver o que tinha do outro lado, mas
seria arriscado, a cama já não estava lá muito inteira. Desistiu.
Ele queria sair dali. Queria saber se
Derius estava bem. O Caçador o havia mantido vivo, mas e se ele só precisasse
de um refém? Teria Derius sido vítima desse desafortunado destino? Malcolm não
tinha como saber. Só lhe restava esperar.
O tempo foi passando. Malcolm estava
sentado no chão, encostado na parede, abraçando suas pernas, enquanto tentava
inutilmente controlar os roncos de seu estômago.
- Finalmente acordou. - Disse a voz do lado de
fora da cela em tom zombeteiro.
Malcolm levantou sua cabeça de súbito,
o que fez sua têmpora fisgar. Era o Caçador que falava com ele. Trazia consigo uma
garrafa grande de água e algumas frutas em uma cesta. Ele abriu a porta da cela
com uma chave de metal e adentrou a cela. Foi se aproximando calmamente de
Malcolm, deixando a porta aberta atrás de si. Malcolm percebeu o desleixo do
homem e o homem percebeu que Malcolm percebera.
- Isso mesmo garoto, a porta está aberta. -
Falou enquanto um sorriso se formava em seu rosto. - Vai tentar fugir? Espero
que se garanta em passar por mim.
Ele estava certo e Malcolm aceitara
isso. A centelha de esperança de fugir por aquela porta se apagava conforme o
brutamontes se aproximava dele. O Caçador era uma montanha de músculos muito
amedrontadora. Malcolm enterrou novamente a cabeça em seu colo, não queria
olhar para seu raptor.
- Trouxe essas frutas para você, deve estar com
fome.
Malcolm se recusava a responder. Ele
estava com raiva. Seu plano fracassara, e, embora ele soubesse que não tinha
sido sua culpa, se culpava mesmo assim. Agora estava em uma péssima situação e
não sabia como poderia escapar dela.
- Garoto, eu sei que deve estar nervoso e que
deve ter mil perguntas pra fazer, mas...
- Só uma. - Ripostou entredentes.
- Desculpe garoto, não entendi o que disse. - O
Caçador respondeu calmamente, se agachando de uma distância segura de Malcolm e
deslizando a cesta e a água até ele.
- Eu disse que só tenho uma pergunta.
- Sou todo ouvidos.
- Derius. - Malcolm disse, levantando sua voz.
- O homem que estava comigo. O que fez com ele?
O Caçador encarou Malcolm nos olhos, o
estudou calmamente.
- Ele está bem. - Respondeu enfim. - Não o
machuquei. Não além daquele soco, quero dizer. Ainda está desmaiado mas não
corre riscos. Tenho ele preso em outra sala, tão segura quanto essa.
Os instintos de Malcolm diziam que ele
não deveria acreditar no homem, mas ao mesmo tempo ele soava sincero. De
qualquer forma, ouvir que Derius estava bem o acalmara por ora.
- Bom, ao contrário de você, tenho mais de uma pergunta
a fazer. - O Caçador se levantou e se retirou da cela, trancando a porta atrás
de si. - Tente dormir. Eu sei que a cama não é agradável, mas é o que temos por
aqui. Amanhã nós conversaremos a respeito de algumas coisas, como o porquê de
Arthur ter te enviado atrás de mim.
Dito isso ele se foi. Malcolm tardou a
perceber que o Caçador mencionara o nome de Arthur. Seu coração bateu mais
rápido quando o fez. O Caçador sabia, pela armadilha que foi claramente montada
por encomenda para si, que eles haviam sido enviados por Arthur. Talvez fosse
seguro deduzir que Arthur era seu único inimigo ou talvez o único que ousava ir
atrás dele. Mas isso era de se esperar, afinal de contas o Caçador havia feito
coisas horríveis contra os amigos de Arthur, segundo ele.
Malcolm não havia movido um músculo
desde que o Caçador deixara a cela. Sua mente trabalhava a mil pensando nos
possíveis tópicos a serem abordados na conversa que teria com ele no dia seguinte.
Sua linha de pensamento foi interrompida quando, mais uma vez, seu estômago
reclamou. Ele olhou ceticamente para o cesto de frutas junto ao seu pé. Havia
algumas maçãs, poucas peras e um cacho de uvas roxas, todas frescas. Era o
suficiente para ele. Se alimentou e se hidratou. Olhou para o pseudo colchão
que tinha a sua disposição e, sem coragem de usá-lo, deitou-se ali mesmo no
chão onde estava. Ainda era o final da manhã e Malcolm não tinha sono. Rolou
irrequieto pelo chão duro e frio até que enfim adormeceu. Foi um sono sem
sonhos dessa vez. Ele acordou. O sol ainda podia ser visto pela janela, mas não
sabia se ele estava subindo ou descendo. Muitos músculos de seu corpo doíam por
ter dormido no chão duro. O pseudo colchão bolorento parecia o namorar de
longe. Malcolm enfim cedeu a seus desagradáveis encantos e se deitou na cama.
No início evitou se mexer mais do que o necessário, tal era o asco, mas
conforme o tempo foi passando seus músculos doloridos o agradeceram e ele ficou
mais a vontade. Logo adormeceu novamente.
Malcolm sentiu seu ombro ser balançado
e abriu seus olhos. O Caçador estava o acordando suavemente. Ele se levantou da
cama sentindo certo desconforto pelo grande homem estar ao seu lado.
- Nós vamos conversar agora. - Disse o homem. -
Use a privada pra fazer suas necessidades e depois me encontre no final do
corredor.
Dito isso o Caçador deixou a cela de
Malcolm e largou a porta aberta atrás de si. Malcolm não perdera tempo, ele
tinha uma chance de escapar. Olhou pela porta e viu o Caçador se afastando pelo
corredor. A chama de esperança dele logo se apagou quando olhou para o outro
lado do corredor e viu que dava em uma parede, sem saída. O Caçador estaria no
meio do único caminho que Malcolm poderia tomar ao sair da cela. Agora mais
desperto para a realidade de sua situação, resolveu jogar pelas regras do
Caçador e ver onde tudo aquilo iria terminar.
Esvaziou sua bexiga e foi de encontro
ao Caçador. Pelo caminho passou por mais duas celas que se encontravam ao lado
da dele. Ambas estavam vazias. Alcançou seu carcereiro e o homem o segurou pelo
ombro. "Venha comigo.", ele disse, mas não era como se estivesse
dando uma escolha a Malcolm. Ele o guiou pelas salas do local e o contou que
estavam em uma delegacia na cidade. Pararam frente uma porta cinza de metal polido
com uma pequena janela de vidro retangular no centro que permitia uma pessoa de
fora enxergar o que se passava lá dentro. O Caçador segurou a maçaneta e se
dirigiu a Malcolm.
- Antes de abrir a porta, queria logo te dizer
que seu amigo está aí dentro.
Malcolm manteve a calma sem demonstrar
a ansiosidade que sentia. Estaria Derius realmente bem?
- Ele está algemado a mesa. - Continuou. -
Diferente de você, ele está bastante agressivo e indisposto a cooperar,
portanto tive que tomar essas medidas. Essa é uma sala que eles usavam para
interrogar os presos, achei que não haveria lugar melhor para conversarmos.
Malcolm assentiu com a cabeça, mas não
respondeu. O Caçador o continuou fitando.
- Não vai me perguntar por que te contei isso
antes de abrir a porta?
Ele olhou nos olhos do Caçador. Aquele
homem o estava subestimando, e embora pudesse usar isso ao seu favor, Malcolm
detestava ser subestimado, e já continha raiva demais acumulada dentro de si.
- Está me contando isso por que quer que eu o
acalme. - Explicou, sem vacilar o olhar. - Derius é insanamente leal ao Arthur,
então, se você pronunciou esse nome pra ele como o fez para mim presumo que o
tenha enraivecido, logo, assim que entrarmos na sala, ele vai gritar e xingar,
o que prejudicaria nossa conversação. Está me dizendo isso aqui do lado de fora
por que me pedir para acalmá-lo na frente dele só o deixaria mais nervoso.
- Garoto, você é bom. - O Caçador disse em tom
de aprovação enquanto girava a maçaneta.
O Caçador entrou na frente, e como
suspeitara, Derius começou a gritar. Exigia ser libertado ou morto e dizia que
nunca revelaria informação que fosse a respeito de Arthur para um assassino
como o Caçador. Foi quando Malcolm entrou que Derius se calou por alguns
segundos, perplexo. Ele estava, agora de pé, mas ainda algemado pelos dois
pulsos a um cano de ferro preso na face da mesa. Seu liso cabelo estava solto e
desgrenhado, parecia que havia saído de uma briga contra uma gataria. Malcolm
foi até ele enquanto o Caçador trancava a porta.
- Que bom que você está bem. - Disse Malcolm
apertando o ombro de Derius.
- Eu pensei que ele fosse te matar.
- Bom, pra ser sincero, eu também.
- Podemos conversar agora? - O Caçador os
interrompeu.
- Não temos nada o que conversar, seu assassino
maldito. - Derius fazia chover perdigotos na direção do Caçador enquanto
gritava. - Não vamos te contar nada. Preferimos morrer a trair nossos amigos.
- Não quero que traiam seus amigos. Apenas que
me escutem um pouco, calados. - Disse, enfatizando o "calados".
- Eu nunca irei me calar perante alguém como
você. - Derius retrucou com desdém.
- Derius. - Malcolm interveio. - Deixe o homem
falar. Ficar gritando não nos levará a nada, e ele nos tem em suas mãos, se
quisesse ter nos matado já o teria feito. Não precisa ficar pedindo.
Derius encarou Malcolm com uma carranca
mau humorada e depois olhou diretamente para o Caçador como se estivesse
prestes a cuspir, dessa vez propositalmente, no homem. Ele, enfim, se calou e
se sentou, mantendo apenas as mãos presas acima da mesa.
- Eu sei que Arthur os enviou para me matar. Isso
não é novidade pra mim por que não são os primeiros.
Malcolm franziu o cenho, mas permaneceu
calado. Se aquilo fosse realmente verdade, significava que Arthur tinha mais
confiança neles do que nos antes enviados. Ou que não se importava com a morte
deles. Tinha que ser o primeiro.
- Imagino que ele tenha contado para vocês como
assassinei os membros do grupo dele. - Continuou. - Essa é a mentira que ele
conta para todos que envia pra tentarem me matar.
Malcolm apertou o ombro de Derius
quando este fez menção de novamente irromper em insultos. Isso o fez se manter
calado.
- Não vou negar que matei aqueles três. O fiz.
Mas não os torturei ou os deixei sofrer, já não posso dizer o mesmo a respeito
deles. Vejam, garotos, eu já fui um dos membros dos Sombra. Quando tudo isso
começou, Arthur selecionou cinco pessoas, as mais cruéis, frias e capazes que
ele conhecia. Entre os cinco estávamos eu e Christina, presumo que a conheçam.
Malcolm anuiu.
"Muito
bem. Éramos todos gananciosos. Trabalhávamos como um grupo, mas no fundo todos
sabíamos que era si por si, o que nos motivava era o ganho pessoal. Arthur nos
liderava por ser o mais diplomático. Sem ele nós acabaríamos nos matando em
troca de muito pouco. Certo dia ele nos enviou para pilhar as casas de uma rua
enquanto ele e Christina preparavam um esconderijo novo para nós. Estávamos
sempre em movimento, assim era mais fácil de despistar qualquer um que
estivesse perto de nos descobrir e também, um lugar novo sempre significava
casas ainda intocadas ou centros comerciais, cheios de suprimentos. Quando
chegamos à rua em questão, nos dividimos para agilizar o serviço. Na segunda
casa que invadi, encontrei uma garotinha, não devia ter mais de cinco anos, ela
estava escondida dentro de um guarda roupas, estava abraçada com sua boneca de
pano e chorava muito. Nossa ordem primaria era eliminar qualquer pessoa que
encontrássemos em nosso caminho. Nós éramos como sombras, ninguém deveria notar
nossa presença, saber que estávamos ali. Mas eu simplesmente não pude eliminar
aquela garota. Uma semana havia se passado desde o começo das mortes. Imagino
que ela deveria estar escondida ali desde então, passando fome, sede, e pior,
com medo. Eu a acalmei como pude, na época era ainda mais sem jeito com
crianças do que sou hoje. A levei em meus braços até a cozinha da casa. Foi um
erro. Havia o corpo de uma mulher lá, provavelmente era sua mãe. Ao ver o corpo
a garota gritou, o que atraiu a atenção de meus companheiros de grupo que
estavam por perto. Eles vieram correndo e viram a garota comigo. Me perguntaram
o porquê de ela ainda estar viva, mas não deram tempo para que eu pudesse
responder. Um deles se aproximou com um olhar demoníaco e matou a garota a
pauladas, sem nem hesitar. Eu fiquei paralisado. Enquanto os outros dois
gargalhavam assistindo aquela cena eu pensava se realmente era aquilo que eu
estava me propondo ser. Um assassino sem coração. Eu já havia matado sim, sem
motivos até, mas nunca teria coragem de fazê-lo com um ser tão puro quanto
aquele. Nós voltamos para o nosso esconderijo e eles caçoaram de mim por todo o
caminho. Perceberam que eu estava prostrado. Dois dias se passaram e eu não
consegui tirar aquela imagem da minha cabeça. Um ser tão benigno sendo
massacrado, sem chance alguma de se proteger ou contestar. Eu estava mudando.
Decidi deixar o grupo. Contei para Arthur o que houve, em particular, imaginei
que ele entenderia minha razão e aceitaria minha renuncia aos Sombra. E ele o
fez, ou pelo menos assim o fez parecer. Arthur contou aos outros membros que eu
estava deixando-os, o fez da forma mais serena possível, demonstrava certa
tristeza, mas ao mesmo tempo falava em um tom compreensivo. Eles se despediram
de mim com a tristeza mais ilusória que puderam expressar. Não me enganavam,
todos aqueles cobras, mas não me importava. Não os teria mais que ver. Deixei o
esconderijo e me tornei um errante, logo no meu segundo dia sozinho deixei
minha guarda baixa e mal pude esperar pelo ataque. Meus três ex-colegas de
grupo me emboscaram. Não sei como fui tão tolo a ponto de não perceber. Os
Sombra não podiam ser notados. Ninguém de fora podia se dar conta de sua
existência, mas eu sabia, e agora era alguém de fora. Arthur fez o seu teatro
manipulador e eu fui enganado com maestria. Os três não me mataram de imediato.
De acordo com a conversa que ouvi enquanto me carregavam, Arthur havia
permitido que se divertissem comigo antes de me eliminar. Me levaram à um bar
abandonado e me amarraram pelos pés e mãos a uma cadeira de madeira. Eles me
bateram até seus punhos doerem. Não sei por quanto tempo isso continuou, visto
que desmaiei algumas vezes. Na última vez que acordei estava desamarrado e
sendo arrastado pelas pernas por toda extensão da rua, precisavam da força dos
três para fazê-lo. Minhas costas estavam sendo raladas pelo chão a cada segundo
que se passava, mas não senti desconforto. Já estava imune a dor. Como os três estavam
na minha frente não perceberam que eu havia acordado, e como não tinha muita
força para escapar daquela situação decidi tirar proveito dela como pude. Permaneci
imóvel e de olhos fechados. A cada segundo que passava minhas forças iam
voltando e junto a elas meus sentidos. Os escutei discutir o que fariam comigo
a seguir, decidiram me enterrar vivo. Continuaram me arrastando até um pequeno
parque e me largaram em qualquer lugar na grama úmida. Um deles ficou para me
vigiar enquanto os outros dois procuravam pás ou algo com o qual pudessem cavar
uma cova funda o suficiente para mim. Mantive meus olhos semicerrados esperando
tirar proveito de qualquer deslize na vigia do meu captor. Foi quando ele se
afastou um pouco para fumar que agi. Não tinha força o suficiente para fugir,
eu sabia disso, teria que matá-lo. Me aproximei sorrateiramente enquanto ele
tragava aquele desagradável pirulito de nicotina e num movimento rápido roubei
a faca que ele trazia em sua cintura. Quando se virou para ver o que estava
acontecendo, a empalei em seu estômago. Vi a perplexidade em seus olhos
enquanto os mesmos perdiam seu brilho e minha mão se banhava em sangue quente. Com
o resto de suas forças fez menção de gritar, então cobri sua boca com a palma
de minha outra mão e, pra mantê-lo parado até morrer, o joguei ao chão. Me
coloquei em cima dele, para que não tivesse como escapar, mas não tive todo o
tempo que gostaria. Ouvi os outros dois gritarem ao se aproximarem e
compreenderem a cena. Me levantei e trouxe comigo a faca carmesim, agora pronto
para combater os outros dois. Precisava matá-los. Minha vida dependia disso. E,
de certa forma, estava me sentindo bem em fazê-lo, afinal de contas eu sabia
que tipo de pessoa eles eram. Se os deixasse viver, outras boas e inocentes
pessoas poderiam vir a perecer. Foi uma dança desajeitada, um deles também
tinha uma faca e o outro um porrete de madeira maciça. Eles me golpearam e
cortaram, mas a dor já me era familiar demais, quase não a notava. Emergi
vitorioso e isso me fez pensar que talvez pudesse me redimir de meus pecados.
Matando aqueles três eu estava certo de que havia salvo muitas vidas inocentes
a longo prazo, mas ainda não era o suficiente, eu podia fazer mais. Desde então
eu pilho as casas da cidade em busca de recursos que uso para alimentar pessoas
boas que encontrei por aí. De vez em quando algum súdito de Arthur aparece para
tentar me matar. Faço o possível para tentar fazê-los enxergar o verdadeiro
vilão da história, o que nunca deu certo. Arthur sempre consegue manipular
pessoas para que me vejam como o grande vilão da história, ele é uma pessoa
extremamente perigosa. Mas não posso desistir. É por isso que ainda estão
vivos. Planejo libertar vocês, mas antes queria que soubessem da verdade. Só
não tentem voltar para terminar o trabalho pois caso o façam terão o mesmo
destino dos outros que tentaram. ".
Malcolm viu a carranca no rosto de
Derius se desfazer aos poucos conforme a história se desenrolava. Ele não
achava que Derius acreditaria naquela versão, nem ele mesmo sabia se acreditava
ou não. Era realmente convincente e bem detalhada.
- Não me procurem mais. Não quero o mau para
vocês. E, caso ainda planejem voltar para Arthur, mantenham seus olhos abertos
e vocês serão capazes de enxergar a verdade. Digam a ele que não planejo
atacá-lo. Sei que não estou apto a isso, ele é muito mais habilidoso que eu.
Meu suicídio não traria bem algum a ninguém. Mas se um dia eu o pegar em
desvantagem, ele perecerá por minhas mãos, para o bem desse mundo.
Era informação demais a se processar.
Malcolm estava incerto de tudo. Se Arthur realmente fosse uma pessoa ruim,
talvez Mark, Lisa e Lucas estivessem em perigo, se não, essa semente da
discórdia que havia sido plantada na mente de Malcolm poderia atrapalhar o
convívio de todos.
Sem mais delongas, o Caçador soltou as
algemas de Derius. Para a surpresa de todos, ele não avançou no homem, apenas massageou
seus pulsos por um momento. Malcolm queria um tempo a sós para conversar com
ele a respeito do que o Caçador os havia contado e, aparentemente, o teria. O
Caçador os chamou e os conduziu até a saída da delegacia. Antes de liberar a
porta ele os deu uma sacola plástica com frutas frescas e água. Os informou a
respeito de como voltar à rua Marechal Gerard. Não estava muito longe, talvez
uma hora de caminhada os levaria de volta. Malcolm agradeceu pelos mantimentos,
não sabia ao certo se devia, mas ser educado nunca se mostrara contra produtivo.
Queria perguntar a respeito da arma que tivera consigo quando foi raptado, mas
duvidava que o Caçador a devolveria. Antes mesmo de começarem sua caminhada,
Malcolm ouviu um ladrar ao longe. Derius, que até então mantinha uma postura
abatida, se alertou de imediato.
- Dinky! - Sussurrou para ninguém em especial.
Derius assobiou longa e agudamente.
Logo que o fez, os latidos se tornaram mais altos, até que, virando uma
esquina, Malcolm pode ver o cão vir correndo de encontro ao seu dono. O que o
alarmou foi o garoto que seguia o cão. Derius não pareceu dar a mínima. Assim
que Dinky o alcançou ele se agachou e deixou que o cão lambesse todo seu rosto.
O Caçador assistia a cena, curioso, a alguns metros de distância. Conforme a
criança se aproximava Malcolm pode reconhecer algumas características. Era Mark,
e ele parecia bem abatido e desesperado.
- Mark?! - Malcolm gritou enquanto o garoto se
aproximava numa corrida cambaleante. - O que está fazendo aqui?
- Dê uma das garrafas de água para ele. -
Sugeriu o Caçador, se aproximando. - Ele não me parece muito bem.
Malcolm acatou a sugestão e ofereceu
uma garrafa ao garoto assim que ele os alcançou. Estava ofegante e não
conseguia falar, mas parecia ter mil coisas a dizer. Ele pegou a garrafa d'água
e a bebeu em goles demorados. Se recompôs até que finalmente conseguiu falar.
- Ele os matou, Malcolm.
Derius começou a prestar atenção ao
ouvir aquelas palavras. Provavelmente percebera quem era aquele menino. Malcolm
não entendera de imediato sobre o que Mark falava.
- Do que está falando, Mark? - Inquiriu.
- Arthur os matou. O maldito esteve mentindo
durante todo esse tempo. Ele os usou. Ele não se importa com ninguém que não
seja ele.
O Caçador substituíra seu ar de
preocupação pelo de apreensão.
- Vá com calma Mark. - Malcolm pediu. - Me diga
com calma o que aconteceu.
- Ele os matou Malcolm. Foi o Arthur. Pouco
depois de vocês saírem ele sacou uma arma e atirou nos dois. Primeiro na minha
irmã, e depois no Lucas, eu vi, estão os dois mortos.