terça-feira, 16 de junho de 2015

Lótus - Capítulo 15

            A mão de Arthur, que segurava a pistola prateada rente a cabeça de Malcolm, foi jogada para o lado quando o impacto do tiro de Lucas a atingiu.
           Malcolm não entendera na hora o que aconteceu. Arthur tinha o cano da arma encostado em sua testa. Ele não fechara o olho. Não queria demonstrar fraqueza. E então ouviu o disparo. Mas este não veio de tão perto, tampouco de sua frente. Em seguida a mão de Arthur recebera um repentino solavanco, e isso fez com que a vida de Malcolm não estivesse a um puxar de gatilho do fim. Por pouco tempo, é claro. Ele aproveitou a deixa. Firmou seu pé esquerdo no chão e, com a sola de seu pé direito, empurrou a barriga de Arthur com toda força que conseguiu acumular. O homem caiu impotentemente no chão, molhando todo seu impecável figurino. Já Malcolm caiu por poucos segundos em um desespero que cruzou sua mente em forma de “e agora?”.
- Aqui! – Lucas gritou.
           Malcolm e Mark olharam para o lado e avistaram um homem que acenava desesperado, apontando para uma esquina. Malcolm puxou Mark pelo braço e então foram na direção do homem, para longe de Arthur. A chuva apertara, e isso dificultava a visão, mas não os impedia de correr, e foi o que fizeram.
           Quando passaram pela mureta e deram de cara com Ana e Pamela, Malcolm e Mark travaram. Quem eram elas? Uma mão que vinha por trás segurou em seus ombros e os empurrou para baixo.
- Abaixem-se, agora! – Lucas exclamou. Já se virando para procurar Arthur.
- Foi você quem nos salvou? – Perguntou Malcolm, se abaixando e acolhendo Mark. – Aquele disparo foi incrível, você acertou bem na mão dele.
- Pra ser honesto, confesso que estava mirando na cara. Sejamos gratos por eu ter acertado ele de alguma forma. – Falou Lucas, se virando para Malcolm. – O que seria de você sem mim?
           Malcolm então percebeu, e pelo suspiro de surpresa que Mark emitiu, ele também percebera. Lucas sorria. A água que escorria pela face de Malcolm agora não provinha apenas da chuva, mas ninguém saberia disso. Uma torrente de palavras quis sair ao mesmo pela sua boca, mas ele se conteve por ora.
- Sem você eu não seria nada. – Disse, apenas.
- Eu sei que não. Foi uma pergunta retórica. – Contou Lucas em divertimento.
           Mark se livrou dos braços de Malcolm e, em desespero, abraçou Lucas.

- Não acredito que você está vivo. Não pode estar. – Disse entre soluços. – Malcolm disse que você estaria bem, mas era impossível.
- Sempre me disseram que eu sou “impossível”. Acho que as coisas estão fazendo sentido agora. – Lucas se virou novamente e continuou procurando por Arthur. – Ele sumiu. Estava deitado no chão feito um saco de batatas elegante, mas agora se foi.
- Ele está procurando a gente? – Perguntou Mark.
- Acho que não. – Ponderou Malcolm. – Ele está sozinho no momento e sabe que estamos armados. Mas seria melhor irmos para um lugar seguro o quanto antes, só para garantir.
- E seco. – Resmungou Ana.
           Lucas olhou para ela em reprovação, mas ignorou.
- Nós viemos para cá com um... Um amigo. – Malcolm decidiu que explicaria melhor depois. – Ele estava no terraço de uma casa aqui perto. Melhor irmos nos encontrar com ele.
- Tudo bem. – Lucas assentiu. – Mas e Derius, onde ele está?
- Derius! – Mark exclamou, como se finalmente lembrasse de algo importante. – Eu o vi correndo com algo em seus braços por uma rua. Estava longe, mas acho que era Dinky. Então um homem armado veio correndo pelo mesmo caminho que ele. Foi então que eu desci, estava indo em sua direção, para ajudar.
- Pera, deixa eu ver se entendi direito. – Pediu Lucas. – Você avistou Derius correndo de um homem armado e decidiu passar pelo caminho mais exposto de todos na tentativa de ir ajudá-lo? – Disse debochadamente.
- Bem. – Confessou Mark, fitando o chão em timidez. – Foi.
- Meu tom de deboche foi o suficiente para você perceber a besteira que fez?
- Seu tom de deboche foi o suficiente. – Mark procurava maneiras de enterrar sua cara no chão.
- Ótimo. Assim não preciso te dar um safanão. – Concluiu Lucas.
- Você lembra de pra onde Derius correra? – Inquiriu Malcolm.
- Lembro sim. Posso guia-los até lá.
- E quanto a gente? – Perguntou Ana, se intrometendo.
  Malcolm as fitou por alguns segundos.
- São suas amigas, Lucas?
- A menor, Pamela, talvez. Já a maior, Ana, improvável. – Lucas fez questão de enfatizar o “maior”.
- Bom, estão vendo aquela casa amarela ali. – Malcolm apontou para que as garotas a encontrassem. – Nos esperem lá. Tem um amigo nosso lá dentro. Ele é grande, não tem como errar. Diga que Malcolm o mandou e ele vai proteger vocês.
           De repente, uma mão que lembrava um grande naco de bife, segurou o ombro de Lucas por trás. Ele deixou escapar um gemido agudo quando viu o tamanho daquela mão, sem coragem de olhar para trás e ver o tamanho do dono da mesma.
- Já sou considerado um amigo? – Ponderou Allen. – Ótimo.
           Malcolm interviu com agilidade ao ver Lucas levantando sua arma. As introduções com base em nomes foi feita e Allen, sem delongas, contou que estava indo ao encalço de Arthur enquanto ainda dava tempo. Que o viu fugir pelo lado oposto ao deles. "Algumas derrotas são temporárias. A vitória final é tudo que importa.", ele disse. Deu certeza de que se não fosse morto, logo Arthur voltaria. Pediu também para que o esperassem na casa onde ele, Malcolm e Mark estavam de tocaia ou em algum lugar ali por perto, que ele os encontraria. Para que tomassem cuidado também. Muito cuidado. Allen entregou nas mãos de Malcolm o rifle que encontrou no chão do primeiro andar. Então se foi, tão rápido quanto apareceu.
- Mudança de planos. – Decidiu Malcolm. Dando o rifle nas mãos de Ana. – Vão até a casa e nos esperem no terraço. Se alguma coisa aparecer, atire sem hesitar. Se for um de nós, gritaremos uma palavra antes de entrar no seu campo de visão, para que não recebamos um buraco novo e desagradável pelo corpo.
- Tudo bem, mas que palavra? – Perguntou Ana, abaixando uma das sobrancelhas.
           Malcolm parou por um momento. Se virou então para Mark e Lucas.
- Precisamos de uma palavra de segurança.
- Qualquer palavra? – Perguntou Lucas.
- Qualquer palavra. – Malcolm concordou.
- Pode ser pneu? – Mark opinou.
- Pode ser pneu. – Malcolm concordou. Novamente. Se virou de volta para as garotas. – Se alguém gritar “pneu” antes de subir, não atirem.
           Com isso dito, as garotas deixaram a cena e foram em direção à casa. Mark, sem perder tempo, os guiou por outro caminho. Não tardaram a encontrar vestígios de que Derius havia passado por ali. Encontraram manchas de sangue pelo chão e dois corpos, um homem com o pescoço torcido e uma mulher com o pescoço e o braço mordidos profundamente por presas caninas.
           Mais à frente, se depararam com uma cena um tanto absurda. Um monte de corpos havia sido empilhado. Talvez fossem seis ou sete pessoas, uma encima da outra como um monte de folhas outonais secas, varridas, nos fundos de um quintal. Um aglomerado de pernas, braços e cabeças. E sangue. No topo do monte, o ultimo corpo, estava jogado de barriga para cima, sua cabeça pendia de forma que se o homem abrisse os olhos, veria Malcolm, Mark e Lucas de cabeça para baixo. O primeiro choque foi quando Malcolm reconheceu aquele homem sendo Derius.
- Não. – Suplicou desanimado. – Derius...
- O que foi? – Disse a cabeça pendida de Derius, abrindo os olhos.
           E esse foi o segundo choque.
- Estou descansando. Se não tiverem algo pra falar, por favor, me deixem em paz. – Concluiu, fechando os olhos.
- O que diabos aconteceu aqui? – Falou Lucas, se aproximando de Derius em passos contados. – Se você puder explicar a gente te deixa em paz.
           Derius não respondeu imediatamente. Abriu os olhos e os encarou de cabeça para baixo por alguns segundos. Suspirou, e então continuou.
- Eu ouvi um choro. Eu segui o choro. Tinha um idiota judiando de um filhote. Matei o idiota. O idiota tinha amigos. Matei os amigos do idiota. Esses amigos tinham mais amigos. Corri com o filhote. Dinky e eu emboscamos o resto dos idiotas e... Bem, é isso. Idiotas mortos, filhote salvo e eu estou cansado. Agora, por favor, me deixem descansar.
           Os três se entreolharam. Malcolm ponderou se deveria ou não se alarmar por começar a achar aquilo tudo normal. Mark e Lucas não lidaram muito bem. O garoto menor vomitou, já o maior, engoliu o refluxo.
- Que tal se você pudesse descansar em algum lugar seco e, com menos corpos, por assim dizer? – Sugeriu Malcolm.
- É. – Disse Derius se levantando em um pulo. – Isso seria bom.
           Foi quando Derius se levantou da pilha de corpos que algo surgiu por debaixo dele. Era um cão de porte médio, seu corpo era totalmente negro. Um filhote de labrador. A criatura saltitou feliz, empapada de sangue. Cheirou Lucas, Malcolm e o vômito de Mark, e mesmo depois de repreendido por isso, continuou traquina e peralta. Mark se abaixou e deixou o cão lamber seu rosto.
- Ele tem um dono? Ou um nome? – Perguntou o garoto.
- O dono serei eu. O nome, não sei. – Derius ponderou. – Ele é muito feliz. O nome dele é Feliz.
- Um nome adequado. Agora vamos voltar. – Malcolm pediu. – A propósito, onde está Dinky?
           Derius assobiou longa e agudamente, e logo Dinky aparecera. Feliz ficou ainda mais feliz e saltitou em volta de Dinky, que pareceu não dar muita atenção.
           Juntos voltaram até a casa. Derius se jogou no sofá da sala no primeiro andar e Feliz pulou em cima dele. Dinky se deitou educadamente no chão, e acabaram ficando os três por lá. Malcolm subiu ao terraço gritando “pneu” e graças a isso não ganhou um novo e desagradável buraco no corpo. Todos acabaram por se juntar na sala, para desgosto de Derius que tentava, inutilmente, dormir. Feliz não conseguiu dormir também, mas ele estava feliz de qualquer maneira, pulando e lambendo desesperadamente, com seu rabo balançando freneticamente feito um chicote. Trocaram histórias, conversaram e se conheceram. Houveram momentos bem tristes quando Lucas se lembrou de Lisa, enquanto contava o acontecimento com detalhes, percebeu que as palavras pareciam ter sido ditas por outra pessoa, pois pode ouvir a dor e amargura em sua voz. Malcolm contou de seu episódio com Allen, o “Caçador”, e Lucas ficou feliz por ter um aliado tão útil. Ana e Lucas trocavam ripostadas a cada minuto. Todos acabaram se acostumando.
           A chuva abrandou quando a madrugada caiu. Foi quando Allen apareceu na casa, dando um baita susto em Malcolm, que curtia seu turno de vigia. Ele disse que não conseguiu encontrar Arthur ou Christina, mas que conseguira abater três membros dos Sombra enquanto procurava. Malcolm pediu para que ele fosse dormir. Conversariam com mais calma na manhã seguinte.
           Quando o sol raiou, Lucas, que estava em seu turno de vigia, acordou o resto da casa. Sentaram-se juntos na sala para decidir o que iriam fazer dali em diante. Ana chamou a atenção para o fato de que se ela e Pamela saíram vivas daquela, outros poderiam ter saído também. Sugeriu então que fossem feitas algumas buscas cautelosas pelo território, começando imediatamente. Malcolm pensou nos recursos que, provavelmente, não haviam sido levados do prédio principal, onde tudo era estocado. Que deveriam pilhar o local e levar para um lugar seguro, antes que a palavra de que os Formigas haviam caído se espalhasse. Quem sabe quanto tempo demoraria até que um Eclipse, um Hiena do Asfalto ou qualquer outro clã sórdido aparecesse por ali. Optaram unanimemente em primeiro procurar por sobreviventes. Se dividiram em grupos e tiveram a casa como ponto de encontro. Na metade da tarde, Dinky sozinho havia encontrado cerca de quinze pessoas. Malcolm ficou encarregado da organização, logo, quando a manhã estava para acabar, pediu para que Ana e Pamela cuidassem da refeição. Algo rápido, nutritivo e que rendesse. Ana não fez feio. Sua sopa de legumes fumegante estava deliciosa e saciou a todos. Continuaram naquele ritmo por mais três dias. Quanto mais pessoas eram encontradas, mais grupos de busca eram formados e mais pessoas eram encontradas. No fim eram um grupo de cinquenta e nove pessoas. Malcolm sentiu que já abusava da estadia naquele lugar. Arthur podia facilmente enviar alguém de volta para investigar o que estava acontecendo, se não por eles, pelos recursos no prédio. Seriam descobertos de qualquer maneira. Muitos se juntaram na rua em frente ao prédio e assistiram enquanto Malcolm discursava a respeito da necessidade de se manterem juntos e suportarem uns aos outros. Falou a respeito do transporte dos recursos e estudou, com a ajuda de um mapa, um bom lugar para onde deveriam se locomover. Em algum momento, naquela grande roda de gente que envelopava Malcolm, surgira a ideia de que ele deveria ser seu novo líder. Ele não chegou a ver quem deu a ideia, mas Lucas estava sorrindo no meio da multidão.
           Malcolm levantou sua voz e pediu silencio. Depois de algum tempo todos se calaram.
- Eu não pretendo ser o líder dos Formigas. A ideologia pregada por esse clã não é a minha. – Explicou. – Eu sou uma pessoa boa, mas eu faço coisas más. Desde que tudo isso começou, tenho visto os seres humanos perdendo de vez toda sua humanidade. Tenho visto a ganância e a fome por poder cegarem as pessoas do que realmente importa. Atingimos o extremo da insanidade, da brutalidade, da bestialidade. Poucos são aqueles que realmente se importam com o bem estar alheio, menos ainda são aqueles capazes de agir a respeito disso. Eu sou um deles. Não vou ficar sentado e assistir esses demônios dominarem a todos, não vou assistir pessoas de índole suja tirarem proveito dos bons. Eu já me decidi. Isso pra mim agora é pessoal. Nem todos os bons tem a capacidade de se imporem aos maus, e nem todos aqueles que o fazem são capazes de se reerguer em seguida. Almejo ser aquele que faz a diferença. Eu agora vivo para ajudar e ajudo para viver. Sou um assassino. Eu durmo com isso todas as noites, e o que alivia meu sono é saber que as pessoas que perecem em minhas mãos não mais vão causar mal algum. Arthur, por exemplo. O líder dos Sombra, um espião infiltrado entre pessoas de boa fé, ele foi o pavio dessa carnificina e eu espero, um dia, vê-lo morto. Tomarei providencias para isso. Vocês realmente querem um líder como eu?
           O silencio tomou conta do lugar. As pessoas se entreolhavam, algumas em sinal de aprovação, outras não. A grande maioria não.
- Eu quero. – Disse Lucas.
           A multidão se abriu de forma a destacar Lucas.
- Eu também. – Mark se juntou.
           Então Lucas e o garoto tomaram a dianteira. Se juntaram a Malcolm.
- Escuta aqui. – Lucas tomou a palavra e fez questão de falar alto para que todos pudessem ouvi-lo. – Eu te conheço e não é de hoje. Sempre vi as qualidades de um líder em você. Você me salvou, não só uma vez, e foi sempre capaz de manter seus olhos e coração abertos para enfrentar novos desafios. Eu não estaria aqui se não fosse por você.
- Você ofereceu sua vida pra me salvar. – Gritou Mark. – Quando fui estúpido o suficiente para me meter em um problema desnecessário.
- Você foi o único ser humano capaz de chegar tão perto de me capturar e sair vivo para contar a história. – Allen gritou enquanto caminhava pela multidão até se juntar ao grupo. – E olhem só meu tamanho. Esse garoto merece créditos por isso. – Riu. – Mas agora, sendo muito sincero. Você tem um bom coração, garoto, o melhor que já vi. E é bravo. Eu não me envergonharia ou me arrependeria de seguir sob sua liderança.
- Você abriu meus olhos.
           Malcolm, Lucas e Mark pularam de susto. Olharam para trás e lá já estava Derius. Dinky, de pé do seu lado, abanava a cauda entusiasmadamente, e Feliz pulava, lambia e cheirava.
- Obrigado por isso. – Derius concluiu.
- Woof. – Latiu Dinky, concordando.
- Eu entendo que sua, ou melhor, nossa ideologia seja diferente da dos Formigas, por isso sugiro que criemos um novo clã. Um clã disposto a se sacrificar pelo bem geral. Somos ninguém, nascidos no nada, motivados apenas pela vontade de viver. Juntos nós vamos passar por toda essa lama e no fim, vamos prosperar.
- Como uma lótus. – Ecoou uma voz fina e infantil que logo se revelou.
           Ana e Pamela se juntaram aos outros três, ou melhor, sete. Enquanto a conversa rolava, Allen, Derius, Dinky e Feliz haviam sorrateiramente se juntado. Mesmo um pouco tímida, Pamela terminou.
- A lótus é uma bela flor que nasce em águas lentas e de pouca profundidade. Suas raízes vêm da lama, então sobem até a superfície e florescem acima do espelho d’água. Ela começa sendo nada, passa por todas as provações da vida e no fim, ela prospera. Como nós.
           Lucas não pôde deixar de sorrir. Malcolm encontrou seu olhar e já soube o que vinha pela frente. Antes que pudesse intervir, Lucas gritou o mais alto que conseguiu.
- Aqueles de estômago forte, aqueles de pulso firme, aqueles motivados e perseverantes, aqueles com nada mais que compaixão em seu coração. Juntem-se a nós. Hoje começa a revolução dos bons. E os que cumprirem estes requerimentos serão, de braços abertos, bem vindos à Lótus.