Heróis Modernos
Era uma garagem mal iluminada.
Cadeiras estavam espalhadas em um círculo, voltadas pra dentro. No canto do
aposento, uma mesa com biscoitos de sabores diversos, duas garrafas térmicas
com sucos e uma pilha de copos descartáveis virados com a boca pra baixo.
As pessoas chegaram aos poucos.
Dois homens, duas mulheres e um garoto. Na verdade este tinha mais de dezoito,
mas em comparação aos outros presentes era apenas um garoto.
- Bom, eu queria começar agradecendo a presença de todos
vocês. - Disse um dos homens. Ele era o maior e mais forte do grupo. De
aparência rústica, barba hirsuta e músculos proeminentes. Ele passava certo ar
intimidante. Nos olhos, entretanto, trazia consigo um brilho dócil e gentil. -
Quando tive a ideia de formar esse grupo não estava certo de que outros como eu
viriam, mas pensei mais a respeito e cheguei à conclusão de que era esse o
mesmo medo aquele o qual tentamos combater. O medo de estarmos sozinhos. De
sermos inúteis.
Todos o olhavam atenciosamente.
Cada um deles trazia consigo suas bagagens emocionais. Em seus olhos o pedido
de ajuda e a centelha de força de vontade que exclamava "chega!".
- Eu queria começar nossa primeira sessão me apresentando.
Me chamo Gustavo Almeida. Tenho quarenta anos e meu apelido é... - Ele se
interrompeu por alguns segundos. Fitou o chão. Engoliu seco. Respirou fundo.
Criou coragem e continuou. - Meu apelido é Homem-Cotia. Meu super poder... - Ele
falou, quase cuspindo o "super" em desdém. - ...É me transformar em
uma preá.
As interrogações eram claras em
todos os semblantes da sala. Gustavo então se adiantou.
- Os contarei minha história, mas antes, gostaria de também
poder conhecê-los.
Todos se olharam em expectativa.
Nenhum deles queria ser o próximo. Alguns segundos de silêncio se passaram até
que o homem mais novo levantasse a mão.
Gustavo indicou com um gesto
incentivador para que prosseguisse.
- Eu sou o Alfredo... - Ele se interrompeu em um pigarro. -
...Urin. Alfredo Urin. Tenho vinte e dois anos. Meu apelido é Samamboy. Meu
poder é mudar de cor. Mas apenas em tons de verde.
- "Samamboy" como em samambaia? - A mulher magra
perguntou sem muita maldade.
O homem a olhou com uma pontada
de raiva em forma de cenho franzido. Então respondeu.
- Sim, como em samambaia. - Disse entredentes, se contendo.
- Não precisa ficar nervoso Alfredo. - Gustavo falou. - Estou
certo de que estamos aqui pelo mesmo motivo.
- Então que ela se apresente agora. - Alfredo sugeriu
rispidamente.
A mulher olhou para todos. Seus
olhos arregalados em puro terror.
- Ei. Com calma. Não pretendemos obrigar ninguém a nada.
Cada um tem seu tempo. - Gustavo dizia. - Ela vai se apresentar se quiser.
- Eu vou. - A mulher falou em uma voz fina que subitamente
se calou.
Todos podiam ver que ela apertava
com as unhas os próprios joelhos. Estava realmente se empenhando apenas para
estar ali.
- Eu... - Sua voz era estridente. Esganiçada. Não parecia
ser só por nervosismo. - Eu me chamo Ofélia Rodrigues e...
Então ela se calou por completo,
fitando o próprio colo.
- Está tudo bem Ofélia. - Gustavo tomou a iniciativa em tom
de voz brando. - Como eu disse antes, estamos aqui pelo mesmo motivo. Não
precisa ter medo ou vergonha.
A mulher respondeu apenas com um
anuir de cabeça, mas continuou em silêncio profundo por um ou dois minutos
enquanto a expectativa aumentava.
- Eu vou então. - A mulher gorda pediu. - Sou a Porfíria
Augusta de Vita. Meu apelido é A Gorda. E meu poder é levitar.
Todos a olharam com certa
curiosidade, menos Ofélia que continuou encarando as próprias coxas.
- Mas esse é um poder incrível. - Alfredo falou por todos.
- Exceto que só posso levitar um ou dois centímetros acima,
apenas, de superfícies sólidas.
- Ah. - Alfredo deixou escapar, se sentindo culpado. - Entendo.
- Continua sendo algo legal, do meu ponto de vista. Ao menos
seu poder serve de algo. - O último homem falou. Ele usava óculos escuros,
mesmo dentro da sala. Não era tão alto e nem tão baixo. Usava jaqueta de couro
preto e um colar ornamentado com presas de algum animal pequeno. Não importava
de onde você o olhava, aquela aparência gritava "problema". - Me
chamam de Poça, e é exatamente o que sei fazer. Liquefaço meu corpo em água, e
só. Não controlo líquidos, não me movo enquanto meu poder está ativo. Sou
apenas uma poça. E, a propósito, me chamo Igor Fernandes, trinta e dois anos.
O silêncio dominou o ambiente por
algum tempo, até que Ofélia resolveu, enfim, falar.
- A-4. Eu metamorfoseio meu corpo em papel. - Ela disse
baixinho. - E só.
Alfredo se levantou e pegou
alguns biscoitos na mesa de canto enquanto Gustavo voltava à sua história.
- Desde pequeno posso me transformar em um preá. Exceto que
meus amigos nunca souberam a exata diferença entre um preá e uma cotia. Quando
eu tentava corrigi-los, riam de mim. Era mais engraçado me ver frustrado. Então
o apelido pegou, Homem-Cotia. Não me transformo fazem dois anos e cinco meses.
A vergonha que sinto, mesmo sendo privilegiado com um poder...
- Ao menos você é capaz de algo. - Disse Igor. - Eu viro uma
maldita poça. Eu fico estirado no chão. Liquefeito. Sem poder me mexer como
quero. Apenas um monte de água.
- Num mundo onde homens e mulheres voam, têm super força e
agilidade sem igual, eu consigo mudar de cor. Para tons de verde. - Alfredo
completou, desanimado.
- Meu apelido sequer tem a ver com meu poder. Mas isso nem
vem ao caso. Vocês estão indo pelo caminho errado. - Porfíria disse. - Não
estamos aqui para chorar e reclamar. Não pra descobrir qual de nós tem o poder
mais inútil. E sim para superar nossas experiências ruins. Superar nosso medo
do ridículo.
- Exatamente, Porfíria. - Gustavo concordou
entusiasmadamente. - Aqui dentro ninguém é melhor ou pior que ninguém, e lá
fora também. Somos todos humanos, acima de tudo. Quem somos é o que importa,
não são nossos poderes que nos definem.
Todos respiraram fundo. Sabiam
que Gustavo tinha razão. Estavam cansados de serem menosprezados ou julgados
por seus poderes. Porque eles mesmos tinham de fazer isso entre si? Não fazia
sentido algum.
- Essas alcunhas que nos deram no decorrer de nossas vidas,
esses apelidos, são grande parte do nosso problema. - Porfíria comentou.
- As raízes desses títulos estão entranhadas profundamente
na gente. Precisamos nos libertar disso. - Gustavo sugeriu. - De hoje em diante
o Homem-Cotia, Samamboy, A-4, Poça e, bem, A Gorda - Ele disse hesitante, mas
continuou quando Porfíria acenou que estava tudo bem. - Eles não existem mais.
Somos boas pessoas.
- Com habilidades excêntricas. E só. - Alfredo concluiu.
As sessões continuaram por
semanas, todas as segundas e quartas. Se conheceram mais intimamente. Seus
trabalhos, suas infâncias, seus amores, suas decepções, seus problemas, em
suma, suas histórias. Confidências trocadas junto as novas amizades.
- Uma vez eu evitei um encontro inesperado com minha ex-namorada
na rua. - Igor contava, risonho, no bar onde agora se encontravam aos sábados.
- Virei poça no susto e lá fiquei até ela passar.
Todos riram. Porfíria até deixou
sair um pouco de cerveja pelo nariz. Já estava um pouco alterada.
- Foi aquela que te traiu com uma amiga sua? - Ofélia quis
saber.
- Essa mesmo.
- Eu ganhava muito no pique esconde me escondendo entre
qualquer vegetação. - Alfredo confessou enquanto gesticulava para o garçom. - Desse
mais uma rodada. - Pediu em um berro então.
- Veem só? - Gustavo falou enquanto empalava batatinhas
fritas em série com um palito de madeira. - Nossos poderes não são de todo
ruins. Eu também já usei o meu ao meu favor. Eu me transformava todo dia no
caminho para a escola. Tinha um beco que me poupava quinze minutos de
caminhada, mas eu só conseguia passar pelo pequeno buraco na cerca de ferro que
fechava o caminho na minha forma de preá. Eu sempre pude dormir por mais quinze
minutos graças a isso.
- Eu sempre escrevo anotações no meu corpo. - Ofélia falou
um pouco entusiasmadamente demais.
- Mas isso nós todos podemos fazer. - Igor disse,
gargalhando quando Ofélia colocava a mão na boca ao perceber que tinha gritado.
Todos riram alegremente.
- É mesmo? - Ofélia caçoou. - Mas eu consigo anotar a lápis.
Todos riram ainda mais.
- Eu ainda uso meu poder constantemente. - Porfíria falou. -
Sempre que posso me jogar de um lugar alto, para cortar caminho, o faço.
Levitar nulifica o impacto com o solo e, como levito perto demais do chão, as
pessoas as vezes nem percebem o que fiz. O rosto delas quando me veem pular de
dez metros e cair numa pose heroica, me levantar e sair andando como se nada
tivesse acontecido, é impagável.
- Parkour. -
Alfredo gritou. E todos riram noite à fora.
Suas fobias e vergonhas foram
diminuindo a cada dia que passava. Juntos eram capazes de superar qualquer
adversidade. Os cinco ganharam um novo super poder. O super poder mais super
que qualquer outro poder. A amizade.
Um dia, no parque, Gustavo se
transformou em cotia, sem motivo aparente. A verdade era que ele sentia
saudades de se transformar. As pessoas ali presentes riram de sua habilidade,
mas a aprovação no olhar de seus amigos fez com que ele ignorasse todo o resto.
Não levou muito tempo até que os
cinco estivessem exibindo seus nem um pouco incríveis poderes enquanto
brincavam juntos.
Anos se passaram para os cinco.
Alguns formaram família, outros tocaram pra frente suas carreiras, mas todos mantiveram
a amizade firme e forte.
Ainda moravam na mesma cidade
pacata de sempre. O vínculo com o local era difícil demais de ser quebrado.
Fossem os invernos quentes, as promoções semanais do supermercado, ou quem sabe
o fato de que hoje em dia, cada um deles era respeitado por toda a população,
pelos heróis que eram.
Ninguém se esqueceria do dia em
que o Capitão Poça, sozinho, salvara cerca de quarenta crianças do orfanato em
chamas. Ou quando o Matiz Verde e o Homem-Preá emboscaram o grupo de caçadores
ilegais que estavam ameaçando espécies da fauna local. Quando a exímia artista
marcial, B-0, capturou os bandidos responsáveis pelo assalto ao banco da cidade
com seus cortes de papéis tão precisos. E a grande Le Vita, que com seu enorme
talento, entrou para o livro dos recordes como o maior número de cachorros-quentes
comidos dentro de quinze minutos, colocando então a pequena cidade nos
holofotes por um tempo.
Não salvavam o mundo, mas não
precisavam. Viviam suas vidas pacatas, repletas de problemas comuns. Faziam o
bem que podiam e quando podiam, e, o mais importante de tudo. Eram felizes, não
só com o que tinham, mas, finalmente, com quem eram.