segunda-feira, 11 de maio de 2015

Lótus - Capítulo 13

           Malcolm perdera o controle de sua inabalável calma pose à menção da morte de seus amigos. O Caçador com certeza percebera, pois fez questão de leva-los de volta à delegacia. Derius os seguiu relutante, com Dinky atrás de seus calcanhares. Voltaram até a sala de interrogação. Ao entrar, Mark logo afundou seu rosto na barriga de Malcolm e se pôs a chorar. Parecia estar precisando do conforto de alguém. Derius estava no canto da sala, bastante desconfiado. Olhar para o cano de ferro na face da mesa fazia seus pulsos comicharem. O Caçador entrou por último e encostou a porta atrás de si.
- Mark. - Disse. - É esse seu nome, não é?
           Mark desajeitadamente engoliu o choro. Se virou e tateou em busca da mão de Malcolm, para segurá-la. A camisa de Malcolm tinha um tom mais escuro onde as lágrimas do garoto foram amparadas.
- É sim, Mark Donnoval.
- Olá Mark Donnoval. - O Caçador sorriu. - Eu me chamo Allen Cooper.
           O garoto permaneceu calado, coçando os olhos vermelhos com sua mão livre.
- Então, Mark. - Allen continuou. - Você está com fome?
           Mark estava um tanto receoso. Aquele homem enorme o intimidava e o fato de ele estar sendo tão simpático o intimidava mais ainda. Olhou para Malcolm em busca de algum consenso do mesmo, mas tudo que viu foi um vago olhar, Malcolm aparentava estar intrigado com a situação, como se estivesse processando a possibilidade de aquilo realmente estar acontecendo. O garoto resolveu recusar, mas seu estômago respondeu primeiro.
           Allen deixou a sala por um instante, deixando os três a sós. Derius não disse nada a respeito de nada, apenas puxou a cadeira do interrogador para mais perto da parede e se sentou. Dinky se deitou aos pés do dono. Mark apertou a mão de Malcolm, esperando alguma reação, mas não obteve sucesso. Allen retornou com duas maçãs e as colocou na mesa. Mark não perdeu tempo.
           Quando Mark chegou ao miolo da segunda maçã Allen perguntou serenamente.

- Será que você poderia explicar com calma o que aconteceu?
           Mark anuiu. Era a coisa sensata a se fazer, se acalmar e contar tudo, ele sabia disso. Se sentou na cadeira do interrogado e começou a falar.
"Assim que vocês dois deixaram a casa eu subi para o quarto da minha irmã. Achei que devesse visitá-la. Conversamos um pouco, e eu a perdoei. Lucas chegou depois de um tempo e se sentou na cama conosco. Conversamos mais um pouco, nós três. Em certo ponto estávamos, eu e o Lucas, incentivando minha irmã a sair um pouco daquele quarto. Ela estava relutante, mas acabou cedendo. Guiamos ela até o andar de baixo. Pudemos ouvir Arthur e Christina na cozinha, conversando em voz baixa, mas eles não nos ouviram. Quando nos aproximamos da porta acabamos por escutar a conversa deles. Eles falaram que agora só precisavam se livrar de nós três para então botar em prática a operação "formicida". Que agora com aquela base dos Eclipse fora de jogo eles podiam atacar os Formiga sem ter que se preocupar com ameaças de fora. Nisso, Lucas colocou suas mãos na minha boca e na da minha irmã, ele olhou pra gente pedindo silêncio absoluto. Christina continuou dizendo que acabaria conosco durante a madrugada, enquanto dormíamos e que Arthur deveria acionar os membros infiltrados para que pudessem atacar logo no próximo dia. Era tudo o que Lucas precisava ouvir, ele se virou novamente para nós e avisou que estaríamos indo embora agora. Ele tomou a dianteira num passo apressado, mas antes que pudéssemos nos afastar da porta da cozinha, Lisa tropeçou. Lucas estava um pouco na minha frente então o vi, assim como eu, congelar e olhar pra trás vagarosamente. Esperávamos que Arthur e Christina não tivessem ouvido nada. Mas antes mesmo de Lisa se levantar os dois passaram pelo umbral da porta. "Ora, ora. Se não são os pequenos espiões.", Arthur disse, sacando uma pistola da sua cintura, "É uma pena ter que desperdiçar munição.", e então ele... ele atirou nela. Ele matou a minha irmã sem nem pestanejar. Depois apontou a arma pra mim. Eu não sabia o que fazer. "Espera.", Lucas gritou e então entrou na minha frente. Ele me afastou e mandou eu correr rápido, sair dali e encontrar você. E eu o fiz. Corri o mais rápido que pude pelo corredor e pouco depois de abrir a porta da frente ouvi os dois disparos. Não olhei para trás, apenas corri. Segui primeiro pelo caminho que vi vocês tomarem por que não estava conseguindo pensar direito. Quando a noite chegou pude me guiar pelas estrelas e seguir pro sul. Encontrei um mapa da região esculpido numa pedra bem polida, em uma praça, e consegui localizar a rua para a qual vocês estavam indo, mas quando cheguei lá nessa manhã não os encontrei. Mas, bem, Dinky me encontrou, de certa forma. Deve ter sentido o meu cheiro e então se pôs a uivar. Eu segui o som para encontrá-lo em uma casa fechada. Assim que abri a porta ele fez festa, pulou em mim, me lambeu, mas então saiu correndo. Fui atrás dele. Não teria conseguido acompanhar seu ritmo caso ele não parasse de tempos em tempos para farejar o chão e o ar. Demoramos, mas no fim ele me guiou até aqui, é um ótimo cão."
  Mark acompanhou o desenvolvimento das expressões de Malcolm conforme a história ia sendo contada. Primeiro a incredulidade, depois a apreensão e então, a esperança. Agora ele tinha até um certo brilho no olhar.
- Acredita em mim agora garoto? - Allen falou, cabisbaixo. - Sinto muito pela sua perda Mark. Sinto mesmo. Você está novo demais para passar por algo assim.
           O garoto apenas abaixou sua cabeça e pôs-se a fitar o chão.
- Malcolm, me desculpe. Quando Lucas me mandou correr, eu o fiz. Não pensei no que poderia acontecer com ele. Eu só... só queria sair dali, antes de ver Lisa sangrar, eu não queria... - Mark começara a prantear.
- Ei, ei, fique calmo, está tudo bem. - Disse Malcolm acolhendo o garoto em um abraço. - Você deve estar cansado. Não chegou a dormir essa noite e esteve correndo por aí.
- Eu estou bem. Mas Lucas, eu não...
- Mark, você não o viu ser baleado, viu? - Indagou Malcolm.
- Bem, não. Mas eu ouvi...
- Então há esperança. - Malcolm o interrompeu. - Lucas é um cara durão quando tem que ser. Não se preocupe com ele.
           Allen não conseguiu ver além daquelas palavras. Não sabia a quem Malcolm estava querendo enganar, se ao garoto, para que não se sentisse culpado, ou a si mesmo, tentando desesperadamente se agarrar a uma esperança insensata. Cada um lidava com a perda de sua maneira, se Malcolm estivesse enganando a si, cedo ou tarde a ficha cairia.
- Você precisa descansar, Mark. - Allen disse. - Vou providenciar um lugar confortável em que possa se deitar.
- Não precisa, já falei que estou bem. - Respondeu Mark. - Mais importante, precisamos fazer algo a respeito dos Formigas.
- Quem, exatamente, são os Formigas? - Indagou Allen.
           Agora que Malcolm sabia que Allen falava a verdade, ou que ao menos não mentira a respeito da índole de Arthur, não viu por que deixa-lo por fora do assunto. Contou de forma superficial sua história. Como conhecera Lucas, depois Lisa, Mark e Russel. Todo o capítulo com os Formigas, o problema com os Eclipse, a resolução do mesmo e então contou sobre serem enviados por Arthur para acabar com o "Caçador", que era como ele era conhecido.
- "Caçador"? Arthur me chama de "Caçador"? - Falou Allen, surpreso. - Não vou mentir garoto. Gostei.
           Malcolm e Mark não souberam como reagir àquele comentário. Suas expressões se tornaram tão vazias quanto a de Derius, e Dinky.
- Isso não é importante. - Concluiu o "Caçador". - Agora, sobre esses Formigas. Arthur disse que pretendia erradicá-los e, pelo que me disseram, são pessoas de bem.
- Sim, eles disseram que só o fariam amanhã. - Explicou Mark.
- Você virou a noite, garoto. "Amanhã" é hoje.
           Mark arregalou seus olhos enquanto seu queixo caía. Não havia realizado aquilo até então.
- Então não dá mais tempo. Todos já devem estar mortos. - Disse o garoto.
- Não, garoto. Se tem uma coisa da qual tenho certeza é que Arthur não vai se precipitar com um ataque frontal enquanto puder ser sorrateiro. Tenho certeza que ele vai preferir demorar o tempo que for para não ter que se preocupar com perdas. Ele, provavelmente, vai se infiltrar no núcleo de operações deles e matar todos no seu caminho, de dentro pra fora, assim não será descoberto rapidamente, ou não será descoberto mesmo. Mas não garanto que haverá sobreviventes até o fim da noite.
- Se ainda temos tempo não adianta ficar de conversa fiada aqui. Vamos. - Concluiu Malcolm, se precipitando em direção a porta.
           Allen o segurou pelo colarinho da camisa e o puxou para trás. Mesmo sem usar toda sua força, o tranco fez Malcolm cair sobre suas nádegas.
- Mais pressa e menos rapidez, garoto. - Falou Allen. - Se sair sem um plano estará assinando seu atestado de óbito.
- Você tem algo a sugerir? - Disse Malcolm em tom queixoso.
           Allen tinha reconhecido a astúcia e perspicácia de Malcolm, mas no momento, o garoto parecia tê-las perdido. Ele viu que no fundo, a notícia que Mark trouxera mexera com ele, por mais que ele tentasse esconder ou negar.
- Nós iremos juntos, mas com muita calma. Aquele lugar deve estar apinhado de membros dos Sombra.
- Pensei que não houvessem mais membros além de Arthur e Christina. - Malcolm disse inocentemente.
- Ora garoto, não estava ouvindo a história que seu amigo contou? - Para Allen estava claro como cristal a razão da dispersão dos pensamentos de Malcolm. A preocupação com o tal Lucas era tanta que o estava fazendo deixar passar informações importantes e cruciais. - Isso é o que ele te fez pensar. " Acionar os membros infiltrados " foi o que Christina disse. Tenho certeza que dentro dos Formigas Arthur já introduziu alguns espiões. E digo mais. Ele não tem apenas uma base de operações, apenas os levou para uma vazia que veio a calhar. Devemos estar atentos a ataques vindo de qualquer lugar.
- Você disse que ele vai atacar por dentro, significa que nenhum dos Formiga saberão do que está acontecendo. Vão ver Arthur voltando de uma missão pra qual ele saiu e não vão nem desconfiar.
- Exatamente. E como não haverá alvoroço fica ainda mais difícil para nós. Não saberemos quais são aqueles que nos apunhalarão pelas costas. Não poderemos confiar em ninguém.
           Malcolm levou sua mão ao queixo e começou a ficar inquieto, pensando. Olhou para o lado. Derius e Dinky o observavam calados, já Mark havia adormecido com a cabeça sobre a mesa, sabe-se lá desde quando.
- Quando chegarmos lá não poderemos ser vistos. - Disse então. - Eles têm vigias em pontos altos por todo o perímetro do território, e se nos virem vão relatar por rádio a central. Arthur vai saber que estamos por lá.
- Boa observação garoto. - Allen pensou que era bom ele estar se focando no trabalho. Qualquer coisa que pudesse tirar a história do Lucas de sua cabeça.
- O problema é: Entrei no território apenas duas vezes. Não tenho noção da extensão de seu perímetro.
- Entendo. - Allen coçou sua cabeça enquanto desviava o olhar, procurando uma resposta. - Acho que precisaremos entrar por um desses dois lugares pelos quais você já entrou. Se souber onde estará o vigia fica mais fácil passar escondido. Mas isso, é claro, só vai funcionar se apenas o perímetro estiver sendo vigiado. Caso tenhamos que nos esconder de vários vigias pelo percurso, enquanto adentramos o território, as coisas vão se complicar.
- Da primeira vez que eu entrei, estava sendo guiado por um recrutador chamado Pietro. Quando ele atravessou a linha imaginária do território dos Formigas, acenou para um vigia, mas não lembro dele o tendo feito novamente por todo o resto do trajeto. Andamos por volta de trinta minutos até chegar à área residencial habitada que fica em torno do prédio grande que eles usam como sede.
- Vamos ter que trabalhar com base nisso. Espere um momento. - Allen saiu da sala de súbito, um pouco apressadamente. Retornou um minuto depois com uma folha colorida dobrada em várias partes. - Isso aqui vai nos ajudar.
           Allen desdobrou a folha em cima da mesa, era um mapa detalhado de toda a cidade. Continha todos os bairros e ruas especificadas por nome. Malcolm se aproximou e olhou com atenção, viu que algumas ruas estavam marcadas a mão com as cores amarelo e vermelho.
- O que essas cores significam? - Perguntou.
- As pintadas de amarelo são ruas onde encontrei câmeras de segurança, que podem estar sendo usadas por Arthur ou outra pessoa, mas não pude destruir por algum motivo, seja por pressa, inacessibilidade ou falta de algo pesado para arremessar. - Explicou Allen. - As pintadas de vermelho são as ruas onde encontrei câmeras e as destruí.
- Me admira que você tenha controle desse tipo de informação.
- Hoje em dia qualquer informação ajuda. Mas não leve tanta fé assim nesse mapa. Posso ter deixado alguma câmera de vigilância passar despercebida ou até mesmo podem ter reinstalado uma outra no lugar de uma que destruí.
- Compreendo. Mas sem dúvida é melhor que nada. - Concluiu.
- Consegue se lembrar do local exato por onde entraram no território dos Formigas?
- Deixe-me ver.
           Malcolm passeou com seu indicador pelo mapa, localizou alguns pontos importantes, como a base de operações dos Sombra onde eles estavam e também a base dos Eclipse do qual haviam se livrado, e os informou a Allen. Localizou o prédio central de onde os Formigas operavam e logo chegou onde queria.
- Entramos por aqui. - Disse repousando seu dedo em uma rua. - Exatamente nesse sentido. O vigia estava na janela de um prédio grande, acho que no antepenúltimo andar.
           Não havia ruas pintadas na região perto dos Formiga, o que indicava que Allen não passara por lá. Ou ainda não tinha um mapa quando o fizera.
- Tudo bem. Acho que podemos ir de carro até aqui. - Disse Allen, apontando para uma rua próxima de onde planejavam entrar. - Provavelmente seremos pegos por algumas câmeras de Arthur pelo caminho, mas não acho que terá alguém nos assistindo. Permaneceremos incógnitos.
- Vamos marcar o melhor trajeto no mapa com um lápis.
- Certo. - Concordou Allen com um sorriso. Ele estava começando a se entender com Malcolm. - Se importa de ser meu copiloto?
- Sem problemas.
           Allen deixou que Malcolm escolhesse o trajeto mais adequado e enquanto isso preparou alguns mantimentos para comerem pelo caminho. Ele tinha estacionado sua velha caminhonete azul em uma rua atrás da delegacia onde estavam, a trouxe então para a frente do estabelecimento. Voltou então para junto de Malcolm. Entrando na sala, Allen se deparou com Mark, agora acordado, debruçado sobre o mapa enquanto assistia Malcolm terminar seu trabalho. Derius não fazia mais sua costumeira carranca ao olhar para Allen, tampouco falava algo. O cão ainda estava deitado aos pés de seu dono.
- Tenho tudo pronto, podemos partir. - Disse Allen.
- Eu vou com vocês. - Mark informou enquanto bocejava.
           Allen buscou consentimento para tal afirmação nos olhos de Malcolm, que assentiu em resposta. Ele disse ter explicado tudo para Mark a respeito do que estavam prestes a realizar, todos os riscos e perigos, mas o garoto quis ir mesmo assim. Allen pensou que já era de se esperar, o garoto quereria vingança pela sua irmã e caberia a ele encontrar um meio de impedir que o garoto fizesse algo precipitado.
           Allen foi dirigindo a caminhonete enquanto Malcolm ia ao seu lado, o orientando com a ajuda do mapa. Dinky estava na caçamba, ele espiava curiosamente tudo por onde passavam e farejava o ar com graça, Derius andava de um lado para o outro, tentando impedir seu cão de tombar para fora do veículo em movimento. Já Mark estava deitado, também na caçamba, e o balanço da caminhonete o ninava mais que desvelava.
           Beirava o meio dia quando estacionaram em seu destino. Durante o caminho Malcolm contara um pouco de sua história de maneira mais aprofundada. Como tinha sido pra ele viver naquele inferno, das coisas que ele fizera e até das pessoas que ele matara. Expôs seu ponto de vista, de que assim como Allen ele estava disposto a erradicar as pessoas ruins em prol das boas, que era isso que ele pensava estar fazendo quando aceitou caçar o "Caçador". Allen riu quando sua alcunha foi proferida e o assunto morreu ali. Malcolm percebeu que Allen também desviava dos corpos pelo chão sempre que possível. Precisaram fazer dois desvios do trajeto original, no primeiro um caminhão tinha tombado e bloqueado a rua pela qual planejavam passar e no segundo se depararam com uma rua apinhada de corpos, muito mais do que o comum, quase não se dava para ver o chão de asfalto. Estava claro que alguém os tinham juntado ali, e a razão não lhes interessou por hora. Deram meia volta e tomaram outro rumo.
           Agora os cinco caminhavam juntos e com muita cautela até a entrada do território dos Formigas. Allen era o único armado, tinha consigo sua besta e em sua cintura uma curta aljava recheada de virotes. Malcolm olhou para o alto e viu que o céu estava carregado de nuvens, cheirava como se a chuva não estivesse muito longe.
           Derius foi quem avistou o vigia. Ele não estava no mesmo lugar que Malcolm se lembrara, mas estava suficientemente perto de tal. Estudaram os padrões do vigia e atravessaram seu campo de visão sem muitos problemas. Continuaram adentrando o território, sempre utilizando becos e vielas a seu favor, foi quando os prédios começaram a dar lugar as casas que a chuva se pôs a cair. As gotas mornas desciam do céu cinza, nublado, e fustigavam seus rostos. O petricor pôde ser sentido enquanto a água atingia o chão seco. Da outra vez Malcolm tinha levado vinte minutos para chegar ao prédio central, desta vez demoraram quase o triplo do tempo, o que era de se esperar, visto que se moviam com muita cautela e atenção.
           Malcolm informou Allen de sua atual proximidade para com o prédio central. Decidiram então redobrar sua atenção. O momento não poderia ter sido melhor. Antes mesmo de saírem das sombras, avistaram um homem no terraço de uma casa. Ele não olhava na direção deles, mas poderia olhar. A casa ao lado tinha um andar a mais e uma porta traseira por onde poderiam entrar sem serem notados. Lá de cima conseguiriam uma perspectiva melhor da situação deles. Quando Allen, que tomava a dianteira, se virou para informar aos outros de sua ideia, viu que Derius e seu cão haviam desaparecido. Mark e Malcolm também não haviam percebido e coube a Malcolm confortar os outros de que não deveriam se preocupar com Derius, ele era perito em aparecer tão sorrateiramente quanto sumia. Não havia nada que Allen podia fazer a respeito, não podia se dar ao luxo de sair procurando por Derius e correr o risco de ser avistado. Teria de confiar na palavra de Malcolm e seguir em frente.
           Os três então seguiram para a casa. A porta de trás estava fechada, mas por sorte uma das janelas se encontrava aberta. Allen pulou primeiro enquanto os outros dois esperavam um sinal dele, confirmando de que a casa estava vazia. Não demorou muito para que Allen o desse. Subiram até o terraço evitando passar pelas janelas abertas e lá em cima se juntaram a Allen, agachado atrás do muro. Ele olhou primeiro, calmamente dali de cima e logo avistou o homem no terraço da casa ao lado. Ele estava sozinho. Conseguiu ver também mais algumas pessoas salpicadas em terraços e varandas de casas aleatórias em torno do prédio sede. O mesmo tinha por volta de dez andares e, por ser o único prédio por perto, chamava a atenção. De onde estavam, tinham visão clara da frente do prédio, sua grande porta de vidro e boa parte da rua defronte a ele. Fora algumas outras ruas e casas que pareciam estar todas vazias. Como se um toque de recolher tivesse sido dado.
           Allen armou sua besta. Calculou a distância e chegou à conclusão de que conseguiria abater o homem de onde estavam. Nenhum dos outros vigias estava perto o suficiente para ver o homem cair ou ouvir o baque surdo que seu corpo faria ao atingir o chão. Ele apoiou a besta em cima do muro e começou a posicioná-la.
- O que pensa que está fazendo? - Sussurrou Malcolm.
- Eu só estou mirando. Quem vai fazer é você.
           Malcolm franziu a testa em desentendimento.
- Sabe garoto. - Começou Allen. - Eu estive matando pessoas ruins numa forma de penitência pelas coisas ruins que já fiz. Sou plenamente capaz disso. Mas e você? Tentou me matar, mas cá estou, vivo. Se tivesse atirado em meu peito, teria completado sua missão. Sou grande, mas não sou a prova de balas, sabe?
- Já te disse, não o fiz para poupar munição. E já que tocou no assunto, onde foi parar aquela arma?
           Allen finalmente estabilizou sua besta.
- A esqueci no chão daquele quarto fedido. Não me culpe, tive que carregar dois corpos até a caminhonete, o que eu mais queria era sair logo de lá. - Explicou. - Mas agora garoto, prove o que me diz. Se realmente tem estômago para a coisa, puxe o gatilho, antes que ele se mova.
           Malcolm encarou Allen nos olhos por uns segundos. Chegou à conclusão de que ele estava falando sério.
- Eu não vou fazer isso. - Disse então.
- Por que não?
- Porque ainda não sabemos se ele é realmente um membro dos Sombra. - Malcolm percebeu seu deslize assim que o disse.
- Se ele não fosse um membro dos Sombra não estaria de vigia no centro do território.
           Allen não era estúpido e o receio de Malcolm o fez perder o foco por um instante. Ele realmente não gostava de matar sem haver necessidade, mas se aquele homem realmente fosse membro dos Sombra, era um dever dele detê-lo antes que pudesse fazer algum iminente mau a alguém.
- Você está certo. Mas ainda tenho um requisito.
- E qual seria.
           Mark acompanhava com certa curiosidade a conversa dos mais velhos.
- Preciso me certificar de que ele sabe quais são os planos de Arthur. - Disse já engatinhando em direção as escadas.
- Espera garoto. Como assim se certificar?! Ele é um Sombra, é do mau.
- Eu também já fui um Sombra. Você mesmo disse que Arthur é um mestre em manipulação. Talvez eu possa salvá-lo com a verdade. - Malcolm parou a alguns passos da escada e se virou para Allen. - Lucas e eu tínhamos uma regra pessoal. De nunca dar uma terceira chance pra ninguém, mas no meio desse caos, segundas oportunidades se fazem necessárias.
- Muito nobre de sua parte, garoto. Mas tem vezes que mesmo a primeira chance pode te matar. Você tem é que aprender a enxergá-las. Ele é um Sombra, e apenas esse simples motivo deveria ser o suficiente para não se arriscar. Volte aqui. - Sussurrou Allen com urgência enquanto Malcolm já descia as escadas.
           "Risco". Era uma palavra chave pra Malcolm. Sempre estivera o evitando para seu bem. Desde quando se propunha a correr riscos pelo bem dos outros? Ele não sabia responder. Havia mudado. Agora estava já subindo sorrateiramente as escadas para o terraço da casa ao lado, onde o homem se encontrava. Antes de se mostrar, ponderou que se aparecesse do nada, representaria um perigo e o homem poderia alertar os outros ao seu redor, independentemente de sua índole. Malcolm precisava ameaçá-lo com algo. Algo perigoso, por tempo o suficiente para convencer o homem de que ele não estava ali para feri-lo. "Irônico", Malcolm pensou. Não havia nada em mãos, nem mesmo tempo para bolar uma estratégia por que a cada segundo que se passava, Arthur poderia estar matando pessoas dentro do prédio sede. Malcolm subiu ao terraço e chamou, "Ei, você.". O homem se virou assustado para dar de cara com Malcolm a cinco metros de distância dele. Malcolm posicionara seu corpo de lado e tinha levado sua mão esquerda até a lateral da cintura que o homem não conseguia ver. Seu plano improvisado tinha dado certo. Parado daquele jeito qualquer um pensaria que Malcolm estava armado e preparado para sacar sua arma.
- Fique parado onde está. - Disse calmamente. - Eu só estou aqui para conversar, mas tente qualquer gracinha e vou me defender.
- Eu não entendendo. O que poderia querer de mim? - Perguntou o homem. - Não tenho nada, não sou nada e não sei de nada.
- Você trabalha para o Arthur. Para os Sombra. Estou errado?
           O homem o olhou com curiosidade, como se julgasse se valia ou não a pena mentir para ele. Pareceu ter, mentalmente, dado de ombros.
- Não, não está.
- O que Arthur te disse para fazer aqui?
           O homem permaneceu calado, mas quando Malcolm fez menção de sacar sua arma imaginária ele resolveu abrir o bico.
- Não, espere. Eu estava infiltrado nos Formigas para coletar informação, é só isso. E agora eu estou de vigia enquanto ele resolve uns problemas no prédio, prometo que é tudo.
- Você tem ciência de que Arthur é um assassino? - Malcolm indagou com rispidez.
- O que? Do que está falando? - O homem parecia confuso.
- Um assassino é o que ele é. Nesse exato momento deve estar matando pessoas lá dentro. Eu também já fui um Sombra, mas agora sei da verdade. Vim aqui te ajudar, te tirar dessa. - Malcolm se virou de frente para o homem e levantou sua camisa ensopada, revelando não estar armado. - Não quero seu mau, quero te mostrar o caminho certo.
           O homem arregalou os olhos e então franziu o cenho.
- Você diz a verdade. - Concluiu então. - Meu deus, o que estive fazendo? Se ele realmente é um assassino, eu... Eu sou um cúmplice!
- Não se culpe. Venha comigo. Juntos podemos fazer o certo. Ande, não temos tempo a perder.
           Malcolm estava satisfeito consigo mesmo. Caso tivesse atirado não teria ajudado um homem em necessidade. Ele tinha dado uma chance ao homem, como fazia com Lucas e tinha sido recompensado.
           Malcolm o chamava de perto da entrada da escada. O homem pediu um segundo enquanto pegava algo. Se locomoveu até um dos cantos do terraço e de trás de um vaso de plantas sacou um pesado rifle. Malcolm ficou confuso enquanto o homem ia em sua direção, com uma expressão feliz em seu rosto, como a de alguém que acabara de ser libertado de um fardo muito pesado, mas o rifle estava apontado para o peito de Malcolm.
- Aponte isso pra outro lado. É perigoso.
           Então o sorriso do homem se transformou em uma risada e então em uma gargalhada.
- Tolo. Eu sou um espião. Realmente achou que não fosse capaz de mentir. - O homem cuspiu no chão. Agora nervoso. - Você me assustou, garoto. Eu odeio sustos.
           O homem levantou o rifle em posição de fogo e o gatilho foi puxado.
           Por sorte não foi o do rifle. Em um piscar de olhos, um virote atravessou a têmpora do homem, que caiu de lado. Malcolm olhou espantado pra direção do tiro e procurou por Allen. Não o encontrou, mas não importava, que havia sido obra dele estava evidente. Sem perder tempo e muito nervoso por ter caído naquele teatro fajuto, Malcolm chutou o corpo do homem, pegou o rifle, chutou o corpo do homem novamente e voltou para junto de Allen.
           Para desprazer de Malcolm, as primeiras palavras de Allen foram: "Eu te avisei". Malcolm se desculpou por ter agido sem pensar, não era de seu feitio. Allen disse estar tudo bem. Para descontrair elogiou a nova arma de Malcolm e brincou dizendo: "Espero que o Mark esteja trazendo de volta o meu virote. Dá trabalho fazê-los". Malcolm riu desajeitadamente e foi então que percebeu que Mark não estava ali. Allen lera a expressão de Malcolm.
- O garoto estava com você, não estava? - Perguntou Allen.
- Não. Por que estaria? Pra onde ele foi?
- Ele saiu sem dizer nada pouco depois de você aparecer no outro terraço. Imaginei que estivesse indo atrás de você.
- Droga! Precisamos encontrá-lo.
           Ambos, de imediato, levantaram suas cabeças acima do muro e cuidadosamente escanearam os arredores. Em pouco tempo Malcolm o encontrou.
- Ali está ele. - Disse, chamando Allen. - Atrás da lixeira.
           Allen se juntou a ele. Malcolm percebera que Mark estava inquieto. Ele espiava pela lateral da lixeira como se quisesse obter visão de algo em específico. Mark estava em frente ao prédio sede, mas do outro lado da rua. Ele não parecia estar olhando na direção do prédio. O que o garoto poderia ter avistado para sair correndo sem falar o que fosse? Seria Arthur? Malcolm não tinha como saber. O que ele precisava agora era bolar um meio de informar ao garoto que ele precisava retroceder, caso contrário poderia ser avistado, e se um dos vigias estava armado, era muito provável que grande parte, se não todos, estivessem também. Mas Mark não sabia disso. Ele não assistiu o episódio de Malcolm tempo o suficiente para ver a arma.
           Ele saiu de trás da lixeira e correu agachado pela calçada em direção a lateral de um carro branco. E foi quando o primeiro tiro pôde ser ouvido.
           Malcolm, que olhava atentamente pra Mark, chegou a ver a poeira que se levantou da calçada onde o projétil havia acertado, bem perto do pé direito de Mark. O garoto tombou pro lado e caiu com o susto. Então mais um projétil acertou a calçada perto dele e então outro. Mark percebeu que havia sido avistado e agora corria perigo. Mais e mais atiradores se juntavam ao jogo de tiro ao alvo. Por dentre os disparos, Mark cambaleou desajeitadamente e conseguiu chegar ao carro, e num movimento de desespero se arrastou para debaixo do mesmo.
           Malcolm não perdeu tempo. Correu escada a baixo, desesperado. Precisava tirar Mark de lá, mas como? Ao chegar no primeiro andar se deu conta de que ainda trazia consigo o rifle. Conseguiria ele derrubar todos os outros atiradores? Mas quantos eram? Onde estavam? Aquele plano não daria certo e o rifle o estava atrasando. O jogou então para qualquer lado e deixou a casa pela mesma janela que entrara. Deu a volta na casa da maneira mais rápida que pode. Não se deu o trabalho de ter cautela, pois todos os olhos deveriam estar voltados para Mark agora. Conforme ia em direção a rua, ouvia o som dos tiros, e quando o carro entrou em sua linha de visão, pode perceber os diversos buracos de bala espalhados pelo chassis e alguns dos vidros já quebrados. Ele não achava que alguma bala pudesse acertar Mark enquanto ele estivesse ali em baixo, mas cedo ou tarde algum dos atiradores poderia se tocar disso e então vir abater o garoto pessoalmente.
           Os autofalantes espalhados por toda a região subitamente ecoaram uma microfonia mais alta que os tiros. Então uma voz conhecida anunciou: "Cessar fogo.". Malcolm reconhecia aquela voz. Era Christina. Se estava usando o sistema de autofalantes significava que ela estava no prédio e, ao não ser que o homem do terraço estivesse mentindo a respeito disso também, Arthur também estava lá. Allen também acreditava nisso. Seria verdade? A dúvida de Malcolm logo fora esclarecida. Assim que os tiros pararam, uma figura deixou o prédio pela porta da frente. Estava vestido de forma impecável. Um sapato social de bico pontudo preto, uma calça risca-de-giz escura e um terno preto. Usava também um chapéu fedora preto. Tinha em sua mão direita um guarda-chuva aberto que protegia seu traje das finas gotas que ainda caiam do céu. Em sua mão esquerda tinha uma pistola prateada de dar medo. Era Arthur e ele parecia estar pronto para atender a um velório. Ele caminhou lentamente em direção ao carro, mas parou na calçada oposta. Levantou então sua mão esquerda, a da arma, e a levou até o ouvido, como se fosse atirar a queima roupa na aba lateral do próprio chapéu, mas quando Arthur começou a balbuciar para ninguém, Malcolm entendeu do que se tratava. Arthur estava acionando um ponto em seu ouvido e agora estava conversando com alguém. Logo a voz de Christina pôde ser novamente ouvida nos autofalantes, "Retirada. Nosso objetivo foi cumprido.". Malcolm percebeu a comoção em algumas varandas e terraços. Os atiradores estavam deixando seus postos, mas Arthur não se movia, continuava encarando o carro onde Mark havia se escondido. Malcolm não sabia o que fazer. Não podia ir em direção ao carro, se não seria localizado. Arthur estivera parado por tanto tempo, por que Allen ainda não havia atirado? Distância. Era claro que uma besta não conseguiria acertar de tão longe. Malcolm ficara nervoso consigo agora, pois se ao menos tivesse deixado o rifle com Allen, Arthur provavelmente já estaria morto. Será que daria tempo de ele entrar na casa e buscar? Não daria. Arthur começara a se mover.
           O homem andou em direção ao carro com passos medidos. Quando chegou perto o suficiente Malcolm pôde ouvi-lo mandar Mark deixar o esconderijo. O garoto hesitou por um tempo e Arthur aguardou pacientemente. Então ele saiu. "Não tenho medo de você!", o garoto gritou. "Pois deveria.", Arthur respondeu. E então apontou a arma para a testa de Mark.
- Não! - Malcolm gritou, atraindo a atenção de Mark e Arthur. - Não faça isso!
- Olha, olha. Mas que surpresa agradável. - Arthur disse sorrindo. - Chegue mais perto Malcolm, vamos conversar.
           Malcolm se aproximou cautelosamente, sem tirar os olhos da arma de Arthur. Ao se aproximar, se colocou na frente de Mark para protegê-lo.
- Malcolm já sabe de tudo. - Mark gritou se protegendo atrás de Malcolm. - Seu maldito, você os matou. Agora a gente veio aqui para acabar com você.
- Então o pivetinho abriu o bico? - Arthur deu de ombros. - Fazer o que, não é? Malcolm, não é tarde para você. Podemos fazer um trato. Como já disse antes, você é sensato, esperto e astuto. Sabe o que tem a perder aqui. Deixe-me eliminar esse estorvo atrás de você e eu te levarei comigo, te ensinarei boa parte do que sei. Você tem potencial Malcolm, não o desperdice.
- O que você diz é verdade, eu realmente tenho potencial, e não estou disposto a desperdiçá-lo... Com você.
           O sorriso no rosto de Arthur diminuiu, mas não por completo.
- É uma pena, Malcolm. Existe uma tênue linha entre coragem e imprudência, e você acaba de atravessá-la. Mas ao menos no fim você vai poder morrer como seu amigo. Protegendo o mesmo verme. - Disse Arthur, encostando a arma na testa de Malcolm.
- É bom que me mate mesmo. Se não o fizer vou te fazer se arrepender de todo mal que já causou.
- Caro Malcolm, saiba que lobos não perdem o sono diante da ameaça de ovelhas. Mas fique tranquilo, se deseja realmente morrer, morrerá.
- Antes morto do que um assassino inescrupuloso. - Malcolm disse raivosamente enquanto rangia seus dentes.
- Que assim seja.
                  E então, durante aquela cinza tarde chuvosa, o som da arma disparando pôde ser ouvido por alguns quarteirões.