Assim que Mark correu pra longe, em direção a
porta, Lucas se aproximou do corpo de Lisa. O sangue vermelho já começara a
escorrer pelo peito dela. Arthur sorria. Parecia achar aquilo tudo muito
divertido. Ele não hesitou em atirar em Lucas. O primeiro disparo atingiu seu
peito, mas o ímpeto de raiva fez o garoto dar um passo à frente ao invés de
vacilar para trás. Arthur atirou novamente, dessa vez na barriga. Então Lucas
caiu de joelhos, tampando os buracos em seu casaco com as mãos. Em seus olhos
esbugalhados era possível ver a dor que ele sentia. Não dava para saber ao
certo se a mesma provinha de seus letais ferimentos ou da perda de sua amiga.
Ele caiu deitado e, com o resquício de suas forças, se arrastou até o corpo de
Lisa e então a abraçou. Ficou ali, com seu corpo rente ao dela. Sentia o calor
do sangue e seu cheiro metálico agora se misturava ao aroma de coco proveniente
dos cabelos dela. Um cheiro que ele aprendera a apreciar.
- Quer que eu remova os corpos do corredor
enquanto você pega o garotinho que fugiu? – Perguntou Christina, incrivelmente
calma.
- Não precisa se preocupar. – Respondeu Arthur,
recolocando a arma em sua cintura. – O garoto vai voltar cedo ou tarde em busca
de vingança. Eles sempre voltam. E além do mais, não quero perder meus
preciosos minutos. Amanhã voltaremos à sede dos Formigas. Agora entraremos em
contato com os agentes infiltrados. Precisamos mobilizá-los de imediato. Se
tudo der certo conseguiremos erradicar os insetos até o fim de amanhã.
- E os corpos?
- Deixe-os aí. Podemos retirá-los depois. Não é
como se fossem sair andando.
- Tudo bem.
Com isso
dito, os dois se retiraram para o porão.
Lucas permaneceu imóvel, esperando sua
morte. E foi quando uma lágrima finalmente escorreu pelo seu rosto que ele
percebeu que ela não viria. Ainda não era sua hora de morrer. Por debaixo do
casaco ele vestia o colete que roubara do comandante da base dos Eclipse.
Aquilo tinha salvado sua vida. Ele sentiu o desejo de se levantar, de tirar o
corpo de Lisa dali. Mas de alguma forma se acalmou. A situação era delicada
demais. “O que Malcolm faria no meu lugar?”, ele se perguntou. “Ele pensaria.”.
Lucas permaneceu imóvel deitado sobre o corpo de Lisa. Ele sabia que se Arthur
descobrisse que ainda estava vivo, viria na hora dar cabo dele. Se fugisse agora,
talvez conseguisse encontrar Malcolm. Mas e Lisa? Ela estava morta agora. Logo
quando ela tinha finalmente se recuperado ao ponto de tentar se reerguer.
Aquilo havia sido uma crueldade imensurável. Arthur precisava ser parado.
Arthur precisava ser morto. Ele esperaria até o fim do dia e então o mataria
enquanto dorme. Era a coisa mais sensata a se fazer. Lucas se lembrou do que
Malcolm havia dito a ele mais cedo, enquanto se despediam: “Não se empolgue
muito com Lisa. Arthur tem câmeras espalhadas por toda a casa.”. E com isso ele
decidiu que teria de permanecer imóvel até a calada da noite.
Cada segundo que se passava doía mais
que os tiros que o haviam atingido. Ele não tinha coragem de abrir seus olhos e
se deparar com o rosto sem vida da garota que ele aprendera a gostar. Tudo
aquilo era cruel demais. Seu coração parecia querer implodir, tamanha era a
dor. Ela vinha em ondas. Ele se sentia desamparado. Era impossível combatê-la.
Tudo se tornou uma questão de conseguir ou não chegar ao outro lado. Encolhendo
todo seu mundo em um pequeno ponto. E quando essa onda se ia, ele se sentia
aliviado. Mas apenas por um momento. Até que ela retornava para o lembrar.
Ele lutou consigo mesmo durante horas.
Em certo ponto Christina apareceu e passou por ele enquanto ia em direção à
escada para o segundo andar. Teve que segurar sua respiração enquanto seu
coração pulava em seu peito. Ela não pareceu dar muita atenção aos corpos, nem
mesmo quando passou novamente por eles e voltou ao porão. E foi quando Lucas
percebeu uma pequena falha em seu plano. Ele não tinha como saber se a noite já
chegara. E, agora que pensava a respeito, não sabia ao certo onde Arthur e
Christina dormiam. Seu plano falharia caso ambos dormissem no porão, pois ele
não havia memorizado o código para abrir a entrada secreta da geladeira.
Precisava de um plano B. Poderia esperar até o amanhecer. Até que os dois
deixassem a casa, e então poderia segui-los até a sede dos Formigas. Ele
precisaria de uma arma. Seria a melhor maneira de completar o serviço, pois já
havia visto Derius em ação, e se Arthur tinha lhe ensinado tudo aquilo, não
queria se arriscar em um embate corpo-a-corpo com o vilão. Lembrou então da
arma do comandante dos Eclipse cuja qual ele também roubara. Ela permanecia
debaixo do armário, onde ele a havia escondido. “Um comandante dos Eclipse...”,
ele pensou. Seu colete havia salvado a vida de Lucas, e agora sua arma estava
sendo a escolhida para acabar com o homem mais desumano que Lucas viera a
conhecer. Se aquele outro maldito não tivesse matado Russel, Lucas poderia até ponderar
agradecê-lo quando viessem a se encontrar no inferno.
Imaginou que fosse passar a noite em
claro, remoendo toda aquela dor, mas em certo ponto a exaustão o alcançou. Sua
sorte, ou seu instinto, o fez acordar na hora certa. Ele abriu seus olhos, um
pouco perdido, mas ao ver o rosto de Lisa, olhar dentro de seus agora nublados
olhos verdes o fez lembrar da situação em que ele se encontrava. Seu corpo
retesou de imediato. Não sabia ao certo se havia se movido durante seu sono,
mas agora não tinha tempo para pensar nisso. Ouviu as vozes de Arthur e
Christina vindo da cozinha. Eles passaram despreocupadamente pelos corpos no
chão, desviando deles como quem desvia de um cachorro doméstico dormindo. Saíram
pela porta da frente quietos como fantasmas. Se Lucas não estivesse esperando
pelo clique da maçaneta, não o teria ouvido.
Lucas esperou cerca de uma hora, ou ao
menos foi o que ele estimou, depois que os dois deixaram a casa. Eles não pareciam
ser do tipo que esqueciam coisas, mas nunca se podia ser cuidadoso demais.
Finalmente se levantou. Seu casaco branco estava mais pesado e já não era mais tão
branco. Havia uma pequena poça de sangue no chão em volta de Lisa, o casaco de
Lucas havia servido de esponja para o resto dele. Subiu até o quarto e tateou
por debaixo do armário pela arma que havia escondido. Com ela em mãos, deixaria
a casa rumo ao território dos Formigas. Ao chegar no térreo, antes de sair pela
porta, olhou uma única vez para trás, para o corpo de Lisa. “Eu vou te vingar.
Prometo.”, ele disse. Então se foi.
Ele calmamente fez o caminho de volta.
Ficou atento para qualquer barulho, qualquer movimento e isso o atrasou. Quando
chegou à fronteira do território dos Formigas pôde ver o vigia em uma janela
alta. Ele parecia entorpecido pelo cansaço e graças a isso Lucas pode passar
sem ser percebido. Adentrou o território com cada vez mais cautela. Quando ele
chegou às primeiras casas, se deu ao luxo de descansar um pouco. Toda aquela
atenção e precaução exigiam mais do que o esperado de seu corpo e mente, agora
que estava sentado debaixo da janela aberta de uma das casas pôde perceber sua
respiração arfante. Fechou os olhos e se concentrou em controlar sua
respiração. Sua mão direita suava, mas isso não o fazia segurar com menos
firmeza a arma. De olhos fechados, Lucas se deixou imergir no ambiente ao seu
redor. Podia escutar alguns insetos chiando, as folhas de árvores próximas se
agitando com o vento que ficava cada vez mais forte, o som do mesmo vento ao
passar pelo corredor onde ele se encontrava e o pedido de socorro em tom
choroso que vinha de dentro da casa. Lucas abriu seus olhos de súbito. Seu
corpo enrijeceu e ele calmamente olhou para cima, em direção a janela aberta.
Girou o corpo de modo que ficasse de frente para a parede e então, calmamente,
se levantou. Quando olhou pela janela viu uma sala de estar bem comum. O sofá
verde e suas almofadas surradas eram normais, a televisão velha era normal, a
mesa de centro de madeira com um encalço em um dos pés era normal, o tapete em
tons de grená era normal, a cristaleira ornamentada de porcelanas chinesas era
normal, todavia, a cabeça da velha senhora que jazia separada de seu corpo,
ambos largados perto da porta não eram tão normal assim.
Lucas não quis olhar muito para aquela
cena, mas pelo pouco que olhou viu que o sangue era fresco e a cor da pele da
senhora ainda estava vívida. Não precisava sentir o calor do sangue para saber
que era uma morte recente. Não tardou a ouvir novamente um grito de socorro em
tom agudo. Tinha uma criança na casa, ele estava certo disso. Num movimento
rápido Lucas entrou pela janela. Abaixado, foi até a porta da sala e olhou
cautelosamente. A sala de estar dava direto em uma sala de jantar bem limpa e
arrumada, mas quem quer que tivesse gritado estava além dela. Haviam duas
portas as quais deveria checar, uma estava na parede a direita da pela qual ele
entrara e a outra estava diretamente a sua frente. A porta da direita estava
aberta, portanto engatinhou até a mesa de jantar no centro da sala e caminhou
circulando-a, para que servisse de esconderijo. Assim que olhou pela porta aberta
pôde ver do que se tratava. Via as costas de uma mulher alta e magricela, ela
estava de pé, imponente, na frente de duas garotas. A mais velha era encorpada,
devia ter por volta dos vinte e cinco anos e usava um avental branco manchado,
a mais nova parecia ter por volta dos treze, estava vestida com um conjunto
todo rosa de doer os olhos e lágrimas escorriam por seu rosto desesperado
enquanto, ao chão, abraçava as pernas da garota mais velha. A mulher magra, que
estava claramente as ameaçando, portava uma faca de açougueiro, com seu cabo
branco ainda sujo de sangue fresco. Lucas cruzou o olhar com a garota
corpulenta, o que o fez travar. Se ela deixasse transparecer que o tinha visto,
o elemento surpresa iria por água a baixo. Mas ela não o fez. Pelo contrário, a
naturalidade com a qual ela agiu em seguida fez Lucas se perguntar se ela
realmente o tinha percebido. Ela abaixou-se e trouxe o rosto da garota mais
nova para o seu peito, pedindo para que ela se acalmasse. Olhou então para a
mulher magra e disse: “Se eu ao menos tivesse uma arma, estouraria seus miolos
sem pudor.”. Então levou seu olhar da mulher magra à criança que chorava em seu
colo, mas pelo caminho encontrou novamente os olhos de Lucas e, quase
imperceptivelmente, franziu o cenho, como se desse um sinal. Lucas entendeu a
mensagem. “Se eu ao menos tivesse uma arma, estouraria seus miolos sem pudor.”,
ele tinha a arma e a mulher magra tinha miolos a serem estourados. Simples
assim. Mas apesar disso, a voz de Malcolm sussurrou em sua mente para que não
desperdiçasse munições, e para ser sincero, Lucas não queria mesmo
desperdiça-las porque não sabia quantas ainda restavam. Mas ele tinha um plano,
precisava apenas de um instrumento letal. Sondou a sala de jantar rápido com os
olhos, mas nada o chamou a atenção. Reparou então que as garotas estavam em uma
cozinha, o cômodo mais propício para se improvisar armas. Saiu de seu
esconderijo furtivamente e adentrou a cozinha. A mulher magra estava de costas
pra ele, portanto não o viu ou o ouviu entrar. Olhou pela cozinha em busca de
qualquer utensílio com pontas ou lâminas ao alcance de sua mão, mas não tinha
nada, nem uma colher de pau. Com exceção dos móveis e eletrodomésticos, pesados
demais para serem levantados, a cozinha estava vazia. Lucas lembrou vagamente de Mégara, a membro
dos Formigas que os havia recepcionado ao chegarem no prédio principal, ela
explicara que os Formigas providenciavam as refeições em horários marcados diariamente
para seus membros, portanto seria de se esperar que as cozinhas de todas as
casas tivessem seus equipamentos levados para a cozinha principal do Clã. A
única arma letal que encontrara foi a faca de açougueiro. Felizmente ele sabia
que pedir: “Olá. Poderia me emprestar sua faca para que eu pudesse te matar com
a mesma?”, não daria certo. Lucas então apelou para o improviso. Calmamente
encostou a arma na nuca da mulher magra e disse entredentes com a voz mais
intimidante que tinha.
- Não se mecha. Caso contrário vai sentir o
gosto da minha pólvora no fundo da sua garganta, quando acordar no inferno.
A
mulher enrijeceu o corpo enquanto soltou um suspiro assustado. A garota
encorpada e a menor olharam de imediato para Lucas. Ao que parece, a ação de Lucas
deixara a garota mais velha um tanto incomodada com os possíveis resultados. Já
a menor engolira o choro com a surpresa.
- Você agora vai, calmamente, soltar a sua faca
no chão.
Ela o fez, mas não exatamente como ele
esperava.
Ao invés de soltar a faca, como
requisitado, ela inclinou o corpo pra frente, calmamente. Lucas entendeu que
ela fosse colocar a faca no chão, na frente dela, de forma que ele não
conseguisse usá-la contra ela. Mas o plano dela era um pouco mais agressivo.
Quando suas mãos tocaram o chão, ela as usou de apoio para deferir um coice
abrupto contra Lucas. Ele sabia onde ela estava mirando e, por mais que o golpe
tivesse doído horrores, ele dava graças por ela ter acertado apenas a sua coxa
direita. Com o impacto a arma de Lucas caiu no chão enquanto seu corpo foi
jogado para trás. Caiu sentado sobre suas nádegas já procurando a pistola. A
mulher magra se levantou num pulo, com a faca ainda em mãos. Rapidamente
analisou a situação, viu os olhos de Lucas correrem pela cozinha, e então
pousarem sobre a pistola caída ao chão, entre os dois. Seus olhos se
encontraram. E então os dois saltaram em direção a arma.
Ela chegou primeiro, chutando a pistola
para o lado, e deixando Lucas com uma cara meio decepcionada. Ele então olhou
pra ela, e ela riu.
- Onde você estava escondido? Griselda olhou
por todos os cômodos da casa. E ela não costuma deixar nada passar. – Disse a
mulher, andando lentamente em direção a Lucas enquanto exibia seus dentes
amarelados e testava com o polegar o fio de sua faca.
- Eu estava no banheiro. Ela olhou no banheiro?
– Respondeu em tom sério, tentando ganhar tempo pra si, enquanto se arrastava
para trás sobre suas nádegas.
- É claro que ela olhou no banheiro!
- Mas ali atrás da cortina da banheira? – Seus
olhos sondavam a cozinha em desespero. Estava em busca de qualquer coisa que
pudesse usar contra ela.
A mulher não era idiota. Ela sabia o
que Lucas estava fazendo. Seu desespero a divertia. Assim que suas costas
tocassem a parede da cozinha ele ia olhar fundo em seus olhos, em uma tentativa
inútil de súplica por sua vida. Ela ia se abaixar na frente dele e sem
pestanejar puxaria seus cabelos encaracolados para o lado e o degolaria, como
havia feito com a velha.
- Ela não deve ter olhado atrás da cortina
então. – Ela disse em tom divertido.
- Pois então. Ali que eu... – Sua voz pareceu
morrer quando suas costas se encontrou com a parede. - ...estava. – Terminou
então, engolindo em seco.
Agora era a hora. Ela se aproximou o
necessário. E olhou nos olhos dele. Esse era o momento pelo qual ela esperava.
Poderia saborear sua vitória quando os olhos dele brilhassem e se arregalassem.
Mas não foi o que aconteceu. Ele, de fato, olhou nos olhos dela, mas então
sorriu e suspirou aliviado.
- Muito obrigado, estou te devendo essa. –
Lucas disse.
“Obrigado pelo que?”, ela pensara. Do
que esse idiota estava falando? Isso a confundiu e a fez perder o foco.
- Estamos quites. – Disse a garota volumosa.
A mulher magra percebeu então. Um pouco
tarde demais.
Quando virou o rosto cento e oitenta
graus, se deparou com sua morte. Viu apenas uma luz. Então nunca mais viu nada.
Lucas rolou para o lado para não
amortecer o corpo da mulher. A garota encorpada o ajudou a se levantar e
devolveu a pistola para ele. Pegou a faca para si.
- Vamos sair daqui. Agora. – Disse a garota
rechonchuda com um pouco de raiva.
- Calma. Minha coxa está doendo um pouco. Essa
maldita égua fez um baita estrago.
- Marcia? Que barulho foi esse? – Gritou uma
voz em tom desaprovador vinda de outro cômodo. - Eu pedi pra você me esperar.
- Vamos sair daqui. Agora. – Repetiu, dessa vez
com mais raiva.
Lucas
anuiu. A garota mais velha puxou a mais nova pelo braço e saiu pela porta que
Lucas havia entrado e, ironicamente, até a janela da sala pela qual ele havia invadido.
Ela pulou primeiro e depois puxou a garota menor que se estatelou no chão.
Nenhuma das duas pareceu se importar com isso. Lucas foi em seguida, e antes de
deixar a casa pôde ouvir a exclamação de horror vinda da cozinha.
Quando
deixou a casa se pegou parado no corredor. As duas garotas o engoliam com os
olhos, parece que esperando por um comando. Lucas as estudou de cima a baixo, o
que fez a garota mais velha puxar a mais nova pra perto de si em um ato de
proteção.
- Pra onde nós vamos agora? – Perguntou a mais
velha.
- “Vamos”? Plural? – Lucas levantou as
sobrancelhas. – Eu tenho algo a fazer ainda, mas sugiro que vocês caiam fora
daqui o mais rápido possível.
- Não vamos andar por aí sozinhas.
- Não vão estar sozinhas. Você vai estar com
ela e ela vai estar com você. – Disse em tom brincalhão.
- Não me venha com essa, seu babaca. –
Respondeu, com rispidez, a garota gorda. – Você me entendeu bem. Vamos com
você.
- “Babaca”? Sério? – Inquiriu atônito. –
Percebe que tenho uma arma em mãos.
- Uma arma que você é incapaz de usar. Mais um
motivo pra me querer por perto. Assim posso te salvar de novo quando você
quiser salvar alguém.
Responder era inútil, Lucas percebera.
Aquela balofa idiota não sabia do que estava falando. Ele estava perdendo seu
precioso tempo ali, então, silenciosamente, deu as costas para as duas e
começou a andar. Logo percebeu que ambas estavam em seu encalço. Deixou pra lá.
Algo chamou sua atenção. Uma nuvem
trovejou em sinal de iminente chuva, e o ribombar desse som fez com que Lucas
olhasse para o alto. “Não tardaria a anoitecer.”, Ele pensou. Sua cabeça fez o
movimento para que ele voltasse a olhar para frente, mas no meio do caminho ela
parou. Ele vira um homem armado no terraço de uma casa. Precisaria tomar ainda
mais cuidado de agora em diante.
Esperou
as garotas se aproximarem e as deixou a par da situação na qual se encontravam.
Ele precisava que elas ao menos tomassem cuidado para não serem vistas, já que
o estavam seguindo. A gorda respondeu pelas duas quando anuiu agressivamente.
Lucas não sabia ao certo como alguém podia anuir com raiva, mas de certa forma
ela conseguia.
Depois
de algum tempo andando percebeu que já chovia. A dor que o fazia mancar
levemente da perna direita não o deixou se tocar das gotas geladas que
fustigavam seu rosto até então.
Estavam agora próximos do prédio
central e, a cada duas ou três esquinas que viravam se surpreendiam com algum
sentinela em uma varanda ou terraço. Exceto por uma esquina em particular, onde
a surpresa foi maior pelo fato de darem de cara com Derius e seu fiel parceiro,
Dinky. Ele e Lucas se entreolharam. Lucas sentiu acender dentro de si uma
centelha de esperança. Se Derius estava ali, Malcolm também poderia estar. Ele
sorriu e fez menção de abraçar Derius, que deu alguns passos pra trás, com
asco.
- Que nojo, cara. – Derius disse. – Você está
morto. E eu estou com pressa.
Lucas não sabia o que dizer. Ele só
conseguiu olhar enquanto Derius se afastou dele calmamente, e então sumiu por
uma viela. Dinky, por sua vez, pulou em Lucas. Quando a pata do cão atingiu o
local onde a mulher o tinha machucado, Lucas abafou um gritinho fino do qual
ele não se orgulhara. O cachorro olhou para ele desconfiado, entortou a cabeça,
curioso, e então correu na mesma direção que seu dono. A gorda mordeu os lábios
para não rir. Lucas percebeu.
As garotas não pediram explicação, o
que foi bom, visto que Lucas não sabia como explicar. Chegaram então em uma
esquina bem posicionada. Estavam agora atrás de uma mureta que batia na altura
da barriga de Lucas. Agachados os três eram invisíveis pra qualquer sentinela a
vista. Do outro lado da mureta era a via principal, de frente ao prédio sede
dos Formigas. Lucas não tinha como chegar ao prédio sem ser visto, mas Arthur
também não tinha como sair dele sem ser visto, o que já era alguma coisa. O
plano era simples. Quando Arthur saísse, Lucas se aproximaria e acabaria com
aquilo em um tiro certeiro. Só o restava esperar.
Elas logo se mostraram impacientes.
- O que estamos esperando? – A gorda perguntou.
Ele abriu o jogo. Não tinha muito o que
fazer se não esperar por Arthur. Se apresentou, disse o porquê de estar ali e,
por fim, o que pretendia fazer. Isso sem nunca tirar os olhos da entrada do
prédio. A gorda cooperou e também fez as apresentações. Ela se chamava Ana
Everglide, tinha vinte e quatro anos, embora tivesse rosto de dezesseis, era
bem baixa também, tinha por volta de um metro e sessenta de altura, Lucas
percebeu (Decidiu fazer um comentário maldoso e ofensivo a respeito disso alguma
hora), ela trabalhava como cozinheira para os Formigas. Isso o fez lembrar de
Lisa, o que o deixou ainda mais nervoso e motivado a matar Arthur. A garota
menor se chamava Pamela Everglide, era a prima mais nova de Ana que estava
passando um tempo em sua casa quando tudo começou. Ana contou que a garota
tinha treze anos e era bem quieta e um tanto desajeitada, mas era uma ótima
menina. Lucas também notou que a Pamela media de altura pouco mais de um metro
e meio e era quase tão alta quanto a prima mais velha (Decidiu que usaria isso
também contra Ana).
Lucas ouviu um tiro. Os três se
abaixaram de imediato. Então ouviu outro. Eles não eram os alvos, percebeu.
Calmamente expôs o rosto por cima da mureta e procurou pelas sentinelas as
quais ele já havia visto. Algumas miravam em alguma coisa, outras ainda
procurava ao certo onde mirar. Ele seguiu a trajetória até o garoto que corria
cambaleante até um carro que estava há alguns consideráveis metros de distância
de Lucas. Antes que pudesse ver o rosto do garoto, o mesmo se jogou debaixo do
carro para se proteger dos disparos. No fundo Lucas sabia que aquele garoto era
Mark.
O tiroteio continuou e Lucas não pôde
tirar os olhos do carro. Ele não tinha o que fazer. Só podia torcer para que o
garoto saísse dessa ileso.
Os autofalantes espalhados pela região
de repente anunciaram: "Cessar fogo.". Lucas sabia bem de quem era
aquela voz. Era de Christina. Os tiros pararam e se fez um silêncio como se
todos estivessem prendendo a respiração. Alguém então deixou o prédio pela
porta da frente. Arthur vinha vestido todo de preto com um guarda-chuva em uma
mão e aquela maldita pistola prateada na outra. Ele caminhou em direção ao
carro com passos contados e parou na calçada oposta. Ele fez algum gesto que,
de longe, Lucas não entendeu bem. Então a voz de Christina pôde ser novamente
ouvida nos autofalantes pedindo uma retirada e dizendo que seu objetivo havia
sido cumprido. Lucas viu os atiradores dos quais ele tinha ciência deixando seu
posto e, com a movimentação, viu até mais alguns. Arthur continuou olhando para
o carro, sem se mexer.
Então
ele se mexeu. Andou em direção ao carro e, quando chegou perto, disse algo.
Lucas esperou, mas nada aconteceu. Até que então o garoto deixou a proteção do
carro e gritou: "Não tenho medo de você!". Era Mark, agora Lucas
tinha a mais completa e total certeza.
Arthur
apontou a pistola prateada para Mark e então ouviu-se o grito.
- Não! Não faça isso!
Lucas procurou, desnecessariamente,
pelo dono da voz. Ele não precisava nem de confirmação. Passou anos escutando
aquela voz. Onde estava Malcolm e em que condições ele se encontrava, era isso
que ele precisava saber.
Arthur falou algo de forma serena e
então Malcolm se aproximou o suficiente para entrar no campo de visão de Lucas.
Ele se colocou entre a pistola prateada de Arthur e Mark, exatamente como Lucas
havia feito antes de ser baleado. “Isso não é um bom sinal.”, Lucas pensou.
- Malcolm já sabe de tudo. – gritou Mark. - Seu
maldito, você os matou. Agora a gente veio aqui para acabar com você.
Lucas ouviu Mark gritar e então Arthur
e Malcolm trocaram palavras as quais Lucas não conseguia ouvir. No fim ele
conseguiu perceber o sorriso no rosto de Arthur diminuir enquanto continuava a
falar com Malcolm. Então o homem encostou a arma na testa de seu amigo, e foi
aí que Lucas agiu.
Ele
deixou seu esconderijo rapidamente, correu até ter uma mira limpa de Arthur.
Mirou no assassino. E então, atirou.